domingo, 28 de outubro de 2012

Flavors: Abnormally Attracted to Sin

Abnormally Attracted to Sin não é um dos álbuns mais amados pelos toriphiles, ainda que possua nele clássicos instantâneos, como Fast Horse, Give e Lady in Blue; por conta disso, supus que seria difícil achar quem quisesse escrever sobre ele para a série Flavors. Qual não foi minha surpresa quando Bossuet Alvim (facebook) habilitou-se a fazer o texto deste disco? E ele foi ainda mais longe: entregou-me uma interessante história de um jovem lidando com seus ditos pecados, história essa que ilustra de forma meticulosa o jogo de poder, abuso, sexo e religião próprio do "Abnormally..."! É com prazer (rs) que lhes apresento seu texto.




Esta história começa à noite. Uma de chuva fraca, ar denso e sensação de abafamento. É uma história de outras, que se colidiram com a minha em diferentes intensidades. Provavelmente por isso, não é linear. Assumo o papel de contador mas são elas que se revelam a despeito de minhas limitações. Estas histórias se casam, se encontram, se refletem com quem ouve e com o que as desfia, mas não têm dono. Se muito, possuem uma autoria do relato, mas buscam sentido em experiências tão pictóricas e sensoriais que não é possível rastrear-lhes as origens.

“Eu te pago um outro drinque, pode virar esse que tá na sua mão” disse o velho no banco alto ao lado de minha mesa. Não o olhei de frente mas podia enxergar com clareza a pinta enorme em meio a sua barba branca, refletida em todos os ângulos do bar espelhado. Agradeci com um aceno de cabeça enquanto o garçom trazia um novo copo cheio, gim sem gelo. Ao autor da oferta ia oferecer um sorriso, mas fui distraído pelo moreno que passou pelo corredor à minha frente. Dispensei o idoso interessado em minhas coxas e fui atrás do que havia me contado ser um homem casado para mais uma trepada. Enquanto subia as escadas que levavam ao dark room, me lembrava de como havia chegado ali.

Começou com a decisão. Saí de casa para o fim de um chuvisco ameno, sentindo pressa. O medo de mudar de ideia me fazia acelerar os passos; um mês de indecisão precedeu a ida. Cheguei à porta disposto a desistir mas acabei impulsionado a entrar com a chegada de um cara trintão, de ombros largos, que me brindou com uma piscadela old school. Já dentro da sauna, perdi o flertador de vista e comecei a me despir; era daquilo que eu precisava. Fiquei excitado ao tirar a roupa em frente a tantos homens. Parte dos que circulavam perto dos armários pararam as conversas para me observar, e senti que havia feito a escolha certa. A vontade de vir a um lugar assim e me entregar a vários surgiu quando meu — até então — namorado desligou o telefone. Encerrou meu décimo telefonema.

À décima negativa dele algo se rompeu comigo. Senti que tinha muito acumulado em mim, que precisava voltar ao meu lugar de comando após tanto tempo me arrastando por mais uma chance. O cara que eu acreditava amar havia me dispensado em nome de seus filhos, de sua esposa, me derrubando de um lugar confortável e seguro entre seus braços — ou ainda com ele entre meus braços, o que me garantia ainda mais segurança. A perseguição dele por uma reputação respeitável me levou direto ao limbo da baixa autoestima. E dele para a portinhola da promiscuidade, aquele lugar rescendente a sexo e desinteresse.

Me senti bem ao ser disputado por homens que jamais desejaria. Consegui distribuir sorrisos enquanto disponibilizava meu corpo ao toque de estranhos, de pessoas que em nada lembravam o ex, que não me satisfaziam diretamente. A satisfação chegava, de qualquer modo, quando eu sentia que os dominava, que tomava controle de suas existências durante aqueles minutos a sós. Ou entre três e quatro pessoas. Sem repulsa, sem muito tesão, sem prazer sexual, me conduzi por várias horas de satisfação pessoal por conseguir criar algum valor para os que se interessavam por mim, entre os que não se sentiam interessantes o bastante. Suficiente para me recolocar em meu cenário de poder após o choque da separação.

Saí daquele lugar úmido para sentir uma brisa fria no Centro da cidade. Derramei últimas lágrimas pela relação encerrada, mas consegui me sentir como se reocupasse um espaço meu na consciência. Longe dos sacrifícios que havia dedicado ao outro. Na praça a poucas quadras da sauna encontrei três amigas: Ofélia, Alison e Veronica. Madrugada, policiamento fraco, algumas travestis no banco próximo, acendemos um baseado. Voltei a me interromper.

A porta de entrada para uma outra consciência, ou apenas uma viagem para longe dos problemas imediatos — seja como for, a onda bateu de um jeito diferente dos outros momentos. Com o cigarro queimando entre os dedos me lembrei que, antes de experimentar qualquer tipo de droga, minha única jornada para fora dos limites conscientes havia acontecido em um ritual religioso. Nada exótico a princípio, o culto de uma igreja neopentecostal me levou a um outro estado das coisas, desejoso de exceder. E ali entendi uma outra forma de pecado.

Se buscamos sempre o conforto da submissão às regras — daí vem quase todo o meu fascínio por religião, contrapeso ao desregramento com que nasci — essa intenção assume contornos quase eróticos a medida em que me entrego para o condutor, pastor ou profeta. A entidade maior, que é alvo das orações, serve como combustível para me manter aceso em meio à multidão de crentes. Quando, através da oração furiosa, revelei alguns de meus incômodos para os irmãos que lotavam o salão, não foi muito diferente do que me arrepiou quando tirei minhas roupas no clube de sexo. Expostos, todos, sob a palavra de algum Senhor, fica fácil criar empatia, mas também muito mais fácil de se enganar com as falsas semelhanças em relação ao próximo.

Não somos parecidos. Ninguém é. Se cheguei a essa conclusão sob influência do entorpecente, não por isso sinto que a verdade se perca. Pelo efeito do tetrahidrocannabinol consigo revisitar as expressões de angústia e euforia que li nos fieis daquela igreja. O pedido vigoroso para fazer parte de algo. A ânsia de integrar um grupo mais forte, vitorioso, cuja orientação vencesse as demais opiniões. Crença. Auto-crença. Condutores de ódio, de medo, em nome da superioridade. Me desliguei daquele culto após uma única sessão, enojado. Mas continuei mantendo contato sexual com um dos pastores, o mesmo que havia me convidado para “conhecer antes de julgar”. Pouco tempo depois, adotei as substâncias ilegais como minha forma pessoal de romper a constância da vida. Acredito que são práticas que correm em paralelo, a da religião lado a lado com a da intoxicação. Uma porta para a fuga. Uma fuga passageira.

“Acho que amor é supervalorizado. Meus pais me amaram e isso não me fez nenhum bem”, disse Veronica. Dentro de minhas reflexões sobre sentimentos, ela e Ofélia ocupam lugares fundamentais e distintos. A ideia de entrega, de sacrifício pelo amor, condenou esta última ao confinamento em papeis de submissão. A primeira, questionadora, é cética quanto a qualquer tipo de envolvimento.

A camiseta de minha amiga tem uma foto de Santa Agnes, que me recorda aqueles versos — “She danc’d along with vague, regardless eyes/Anxious her lips, her breathing quick and short/The hallow’d hour was near at hand: she sighs/Amid the timbrels, and the throng’d resort/Of whisperers in anger, or in sport”. Deve ser gostoso viver como quem se admira, como quem é desejado o tempo todo.

Eu, provavelmente, ainda não estou pronto para abandonar o fascínio que reveste gestos de submissão, os sacrifícios cotidianos que envolvem os relacionamentos. Tentei me diluir no contato físico com um grupo de corpos sedentos, mas por dentro ainda me volto às esperanças de novas conexões. Para ele, o que me deixou, desejo que fique bem. Voltei para casa a passos lentos, sentindo o começo de amanhecer. À janela do meu apartamento, enxerguei a cidade que começava a acordar. Torci para que algo de novo me despertasse daqui a algumas horas, mas para aquela hora — para agora, desejo que ele se encontre após me deixar. De minha parte, prefiro que minha busca continue. Que meus pecados me conduzam.

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Bossuet Alvim tem 24 anos, é jornalista e não se sai muito bem em autodescrições de um parágrafo. Apesar disso, gosta de saber que o formato existe, pois geralmente rende textos bem-humorados permeados de tiradas espirituosas. De sua parte, não foi capaz de pensar em nada do tipo, mas acha importante ressaltar que vive em Minas Gerais, tem sede de contato com o mar e dedica todo o tempo de que dispõe a ouvir mulheres geniais e suas obras estremecedoras.






2 comentários:

bettie disse...

MELHOR TEXTO DE LONGE ATÉ AGORA, CARA PERFEITO, NÃO Q OS OUTROS NÃO TENHAM SIDO LEGAIS, LONGE DISSO, TBM SÃO ÓTIMOS, MAS ALÉM DEU TER ME IDENTIFICADO MUITO COM ESSE ELE FOI O ÚNICO E ME FEZ PARAR DE PENSAR "POXA É VDD, FAZ SENTIDO", DEPOIS DESSE TEXTO A AUDIÇÃO DE AATS NUNCA MAIS VAI SER A MESMA

Hernando Neto disse...

Pois é, Bettie, o que mais gostei no texto do Bossuet foi que ele captou de forma concisa tópicos do álbum e fez através dele com que o AATS se tornasse mais interessante ainda <3