Finalmente estamos concluindo a série Flavors, com um segundo texto sobre o álbum mais emblemático de Tori Amos, Little Earthquakes. Mas antes de introduzí-lo, gostaria de falar um pouco sobre a série em si e os toriphiles que fizeram parte dela.
Quando tive a ideia de organizar alguns textos retratando as emoções que cada disco de Amos transmite (após quebrar um pé e ficar ilhado em casa), não imaginava que conseguiria colaboradores com tanta facilidade e compromisso em fazer disso algo tão bom! Cada palavra escrita pelos fãs que aqui contribuíram é imbuída de sentimentos sinceros, devaneios geniais e até de fatos íntimos, que foram gentilmente abertos com o objetivo de homenagear a bela obra de nossa pianista. Por isso, a todos os que participaram da Flavors: muito obrigado por fazerem de um pequeno sonho meu algo tão especial. E por me salvarem do ócio também hehehehehe
Voltando à programação normal, rs, vamos ao texto de Amanda Guimarães (facebook) sobre o primeiro disco solo de Tori. Com palavras certeiras e trazendo à tona algumas das muitas metáforas matadoras que perfazem este álbum, Amanda tece um relato baseado especialmente em sua admiração à bravura de Amos em expor, nas palavras dela, "dores tão particulares". O mais interessante nisso tudo é perceber como coisas tão íntimas geraram uma identificação coletiva tão grande, o que nos mostra o quanto este álbum é, ao mesmo tempo, único e universal; sem espaço para que isso soe paradoxal. Com vocês, a catarse dos pequenos terremotos.
Little Earthquakes
A música, para mim, sempre esteve atrelada às coisas que aconteciam enquanto eu conheci determinado artista ou canção. Algumas vezes, bandas ou faixas isoladas ficam tão impregnadas de uma memória ruim que eu sequer consigo revisitá-las. Por mais que agradem aos meus ouvidos. Quando eu paro para pensar sobre isso, eu fico muito grata ao universo por ter me permitido conhecer Tori Amos pelas mãos de uma das minhas pessoas preferidas no mundo.
Eu e Tori fomos apresentadas num dia qualquer do ano de 2003. Num dia, provavelmente, tão sem graça quanto todos os outros que eu vivi na adolescência. Mas um dia que seria decisivo para que eu mudasse completamente a minha maneira de pensar. Essa mudança, porém, não aconteceu de forma brusca, mas antes veio do contato com esse álbum nos nove anos seguintes. Porque todas as vezes que escuto, eu me assusto com a coragem de Tori. Coragem de aparecer completamente desnuda na frente de uma multidão. De expor, sem maiores enfeites, dores tão particulares. E, especialmente, porque eu nunca havia conhecido alguém capaz de se colocar numa posição tão vulnerável e ainda assim parecer forte.
Deixando de lado todos os escudos, gosto tanto desse disco porque ele me explica. Me explica pelos rompantes de raiva. Por transformar um piano, algo tão clássico e contido, em rebeldia. Me explica porque demonstra que a gente adquire cicatrizes de tocar nos outros e que se essas feridas não se fecham do jeito certo, podem transformar em osso o espaço onde deveria se formar pele. E, principalmente, esse disco me faz achar que existe um lugar no mundo para esse tipo estranho de sensibilidade que eu tenho. Sensibilidade essa que me permite enxergar um álbum onde temas como as diversas faces da solidão são tratados, de um modo tão incisivo, como algo que, na verdade, quer ser uma celebração.
Little Earthquakes, na mesma medida, cura e faz sangrar.
É ambiguidade sensorial em forma musical.
Para cada explosão da guitarra, existe um solo de piano bem trabalhado. Para cada "tapa na cara", existe uma metáfora poética e bem construída. A cada sentimento negativo está atrelada uma imagem que denota recomeço ou possibilidades. É como se enquanto procura por um salvador debaixo de lençóis sujos ou tenta vocalizar aquilo que esteve preso em seu peito por muitos anos, Tori Amos quisesse nos mostrar o caminho feito por ela para que suas feridas cicatrizassem de um modo que ela não endurecesse. Tori soube deixar que elas se transformassem em pele e soube fazer com que a pele não se tornasse mais espessa do que o necessário para suportar golpes futuros.
E o que ela parece querer demonstrar é que deixar sangrar é necessário. É necessário para que a cura ocorra do modo como deve ocorrer.
Enquanto você não disser para todos aqueles garotos bonitos que eles não são Jesus Cristo só porque eles conseguiram te proporcionar um orgasmo, enquanto você não tiver visitado Barbados, enquanto você não cuspir em todas as pessoas que te apontam o dedo, você, simplesmente, não pode desistir. É preciso continuar lutando por todas essas coisas que, se comparadas com o que aconteceu de negativo, quase desaparecem. Assim, você estará quebrando o controle que todas as coisas ditas preciosas têm sobre você. Mas, acima de tudo, estará começando a encontrar uma maneira de desobstruir o movimento realizado pela dor enquanto tenta invadir seu corpo.
Acredito que aqui a escolha é entre ver uma luz no fim do túnel, mesmo em meio a tanta névoa, ou se entregar a completa descrença. E escolher a luz, por mais paradoxal que soe, é o menos óbvio. E o mais doloroso. É dizer que você ainda tem fé mesmo depois que te provaram que não se deve. É confiar quando você sabe que não se pode.
Tori indica um caminho possível para isso com esse disco. O caminho que funcionou para ela. E para mim. E tenho certeza que para tantas outras pessoas.
Little Earthaquakes foi a forma que Tori Amos encontrou para que as garotas perfeitas tirassem as garras do seu coração. Uma maneira de libertá-lo das velhas correntes. A sua maneira poética, sensível e explosiva de se rebelar contra tudo aquilo que oprime, seja no âmbito individual ou universal. E, portanto, Earthquakes passa longe de ser um disco triste. É uma celebração. Coisas ruins acontecem sim com pessoas boas, mas há nelas algo de transformador. Há algo de motivador de mudanças significativas. Há algo de reconhecível por todos os seres humanos. Há algo de catártico. E libertador.
“Give me life
Give me pain
Give myself again”.
(Segunda ou terceira versão. Escrito por Amanda Guimarães ao som de Precious Things em loop).
Amanda Guimarães é estudante de letras porque não manifestou nenhum talento musical ao longo da vida. Caso contrário exerceria qualquer função dentro de uma banda com muito prazer. Estuda literatura brasileira porque, num determinado ponto, pareceu uma idéia acertada, mas gosta mesmo é de literatura americana. Tem 24 anos (de insatisfação crônica), é muito mais canceriana do que gosta de admitir e finge que é uma pedra de gelo, mas chora com histórias de ONGs que cuidam de gatos de rua. Resumindo: Amanda Guimarães é uma fraude.
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quinta-feira, 15 de novembro de 2012
terça-feira, 13 de novembro de 2012
Flavors: Midwinter Graces
Damos agora continuidade à série Flavors com um lindo conto inspirado em Midwinter Graces, primeiro álbum sazonal de Tori Amos. Ainda que seja um disco um tanto negligenciado pelos toriphiles, Hernando conseguiu unir a magia das músicas de Natal, expressas com maestria nas melodias do disco, àquela tristeza tão típica das festas de fim de ano, que costuma fazer emergir dramas que guardamos lá no fundo. Um texto mágico!
Por Samanta Alcardo (que escreveu o texto do Pink)
Mais Um Conto de Natal
Eu sempre quis conhecer a neve.
Sempre que assistia àqueles filmes que se passavam no natal, aqueles bem americanos mesmo, me imaginava brincando com neve, fazendo bolas, construindo bonecos e toda aquela tradição que parece tão acolhedora... É o tipo de coisa que me faz pensar em saudades de coisas que nunca me ocorreram. E de como essa saudade pode ser real - ou honesta, ao menos.
De uns tempos pra cá, essas vontades infantis tem voltado. Desde que minha mãe partiu, bem dizer. Ela me criou sozinha, e mesmo sendo mais calada que o habitual para o padrão materno (as mães de amigos que o digam), ela sabia como resolver tudo em um ou dois afagos. Talvez por minha primeira casa ter sido feita só de nós dois, eu senti como se tivesse perdido meu mundo quando a vi indo embora - já tenho esposa e uma filha linda, mas até hoje sinto falta do olhar silencioso dela. O mesmo que me olhava com todo o carinho quando era preciso. O mesmo que falava como nenhum outro.
Foi pensando nessa nuvem de reminiscências que pairava sobre minha cabeça que acabei decidindo saciar um desejo que nunca tive a chance antes: iríamos visitar um grande amigo que morava nos EUA, pela época de natal, e assim eu finalmente conheceria a neve! Ao contar para minha filha que nós faríamos a viagem, a primeira coisa que me perguntou foi: “a gente vai pra Disney?!” Disse que dessa vez não, e mesmo ficando um pouco contrariada, contentou-se com a promessa de que compraria um vestido de uma das princesas para ela por lá. “Eu quero o da Bela Adormecida, que é toda rosa e brilhante!”, disse ela, descrição essa que me foi lembrada diariamente, até o dia da viagem. “Crianças são tão insistentes que chegam a irritar”, pensava eu, para depois rir de mim mesmo ao lembrar da neve. “Crianças...”
Quando finalmente desembarcamos, fomos recebidos pelo Josué, e entre os habituais “que saudade!” e “sua menina já cresceu muito!”, fomos ao carro para seguirmos à casa dele. Mesmo faltando alguns dias para o feriado natalino, a rádio já tocava músicas da época, num programa chamado “Your holiday faves”, e ao ouvir Silent Night, lembrei de um disco de minha mãe que ela sempre punha quando chegava a véspera de natal, com “Noite Feliz”.
“Pelo menos aqui eles não tocam ‘Então é Natal’” - Josué interrompe mais um devaneio e é seguido por gargalhadas de todos, o que me fez voltar à realidade e perceber que já estávamos na área de subúrbio onde ele mora. Mesmo me sentindo imerso em um daqueles filmes que tanto gostava, uma coisa me afligia - não via neve em lugar algum! “É porque esse ano está demorando a chegar, também estou estranhando”, respondeu-me enquanto tirávamos as malas do carro.
Cumprimentamos a esposa dele, que nos esperava com chocolate quente e de braços abertos, e depois de alguns minutos conversando sobre a viagem e o impacto que é sair de um verão tão quente para um inverno tão frio como aquele, fomos aos aposentos que ocuparíamos naquela estadia. Aproveitamos para passear bastante nos dias antes do feriado, e mesmo sendo surpreendido por coros cantando pela rua ou me animando com a felicidade de minha filha em usar seu vestido, rosado e cheio de glitter, ainda ficava angustiado por uma dúvida: “por que não nevou ainda?!”
E assim, chegamos ao dia 24 de dezembro. A ceia estava quase pronta, e nesse meio tempo me distraía vendo na TV imagens de outras localidades em que a neve havia caído e eles já faziam a festa que eu tanto queria fazer. “Mas como ficou lindo esse anjo de neve!”, exclamou Isabella, a esposa de Josué, nos chamando logo depois para finalmente sentar à mesa e começar as comemorações. Depois de agradecermos pela refeição, ela pediu licença para falar sobre o significado do natal, e nos presenteou com as seguintes palavras:
“Antes mesmo de Jesus ter nascido, o solstício de inverno já era motivo de comemoração entre os antigos, uma vez que ele representava o renascimento do sol em direção a seu ápice, no solstício de verão. E o mais importante nessa época é lembrar que todas as almas podem passar por períodos de completa escuridão, como é o caso dessa noite, mas tão pronto o dia amanheça, a luz recomeça seu tranquilo percurso para que em pouco tempo, volte a iluminar nossos corações. E crer nisso, meus amigos, é o que nos sustenta perante toda e qualquer incerteza - elas passam. Assim como passam as alegrias, as dores também hão de passar. E quem está vivo, nisso acredita, por mais que não consiga aceitar. Brindemos à esperança, brindemos ao que há de bom para nos salvar!”
Depois de um caloroso brinde, em que quase derramei o conteúdo de minha taça no peru sobre a mesa, sentamos, conversamos e fomos uma família até a hora de deitar. Após beijar minha esposa, deito minha cabeça no travesseiro e subitamente me lembro: “e a neve, por onde anda?”. Não demorou muito, e acabei adormecendo sem mais hesitar.
“Neve! Pai, tem neve!”
Sou acordado por Aurora com seus gritos de alegria, e quando consegui formalizar o que ela havia me dito, senti-me como se tivesse acabado de engolir uma pedra! “Finalmente eu vou conhecer a neve...”, pensava alto, e ao mesmo tempo que me trocava, sentia um terror súbito de ir lá fora. Aquilo ia e vinha, até me fazer ficar sentado por algum tempo refletindo se era tudo verdade. “Vem logo, amor, a menina quer brincar com você!” - Marília me fazia acordar pela segunda vez, e agora sim saíra do quarto.
Ao pisar naquele tapete branco, sentindo o ar frio invadindo meus pulmões, permaneci um tempo parado, como se ainda estivesse tentando acreditar. Foi aí que Aurora jogou uma bola de neve nas minhas costas e, finalmente, abri um sorriso que nem os coros, nem o chocolate quente ou qualquer outra coisa daquele lugar haviam me proporcionado - foi quando fiz a minha primeira bola e joguei contra Marília, e assim, começamos nossa brincadeira! Josué e Isabella ficavam nos olhando com se fôssemos 3 crianças comendo melaço pela primeira vez, até que ele, após levar uma bolada minha, desceu e me ajudou a fazer meu primeiro boneco de neve! “Felicidade branca, felicidade alva!” - era só nisso que pensava!
Passada a excitação do momento, aproveitei que todos haviam entrado pra se esquentar e fiquei sentado, na varanda da casa, observando um pouco o movimento da rua. Foi quando avistei uma senhorinha, de baixa estatura e longos cabelos grisalhos, visíveis mesmo com o gorro que ela usava, passando umas casas à frente. De imediato, lembrei de minha mãe. Quase que instintivamente, desci a escada na entrada da casa e fui ao encontro dela, como se tivesse algo a lhe dizer - foi quando um das sacolas que ela trazia caiu no chão, e me precipitei para recolhê-la. Ao subir minha vista e olhar para seu rosto, senti-me estranho por confirmar que não era ela.
“Oh, thank you, sir!”
“De nad- oh, you’re welcome, lady”
Ela me deu um sorriso cortês antes de seguir seu caminho. Retribuí, sorrindo de forma desconcertada, e voltei para casa. “You’re not there”, no rádio alguém cantava.
Subi ao quarto, e chorei.
Chorei todas as lágrimas que podia chorar, e senti os pingos caindo como cachoeira sobre minhas pernas, ainda um pouco geladas. Foi aí que Marília, ouvindo do corredor meus soluços, chamou Aurora para falar comigo. Minha menina entrou no quarto, perguntando porque seu papai chorava e então veio me abraçar.
A segurei em meus braços, disse que estava tudo bem.
E ela sorriu para mim.
Ela sorriu para mim.
De repente, lembrei das palavras de Isabella, naquela mesa de jantar:
“Assim como passam as alegrias, as dores também hão de passar. E quem está vivo, nisso acredita, por mais que não consiga aceitar. Brindemos à esperança, brindemos ao que há de bom para nos salvar!”
Foi quando Marília também entrou para me abraçar. E ao tê-las do meu lado, no mais completo silêncio, eu soube que ela também estava lá. Fechei os olhos e senti de súbito meu coração esquentar...
Você estava lá.
Você estava lá.
And all is calm... All is bright
---
Hernando Siqueira Neto, 25 anos. Uma pessoa que aproveita bastante seu ócio criativo e sua suposta solidão. E que vive pensando em Marianne.
Por Samanta Alcardo (que escreveu o texto do Pink)
Mais Um Conto de Natal
Eu sempre quis conhecer a neve.
Sempre que assistia àqueles filmes que se passavam no natal, aqueles bem americanos mesmo, me imaginava brincando com neve, fazendo bolas, construindo bonecos e toda aquela tradição que parece tão acolhedora... É o tipo de coisa que me faz pensar em saudades de coisas que nunca me ocorreram. E de como essa saudade pode ser real - ou honesta, ao menos.
De uns tempos pra cá, essas vontades infantis tem voltado. Desde que minha mãe partiu, bem dizer. Ela me criou sozinha, e mesmo sendo mais calada que o habitual para o padrão materno (as mães de amigos que o digam), ela sabia como resolver tudo em um ou dois afagos. Talvez por minha primeira casa ter sido feita só de nós dois, eu senti como se tivesse perdido meu mundo quando a vi indo embora - já tenho esposa e uma filha linda, mas até hoje sinto falta do olhar silencioso dela. O mesmo que me olhava com todo o carinho quando era preciso. O mesmo que falava como nenhum outro.
Foi pensando nessa nuvem de reminiscências que pairava sobre minha cabeça que acabei decidindo saciar um desejo que nunca tive a chance antes: iríamos visitar um grande amigo que morava nos EUA, pela época de natal, e assim eu finalmente conheceria a neve! Ao contar para minha filha que nós faríamos a viagem, a primeira coisa que me perguntou foi: “a gente vai pra Disney?!” Disse que dessa vez não, e mesmo ficando um pouco contrariada, contentou-se com a promessa de que compraria um vestido de uma das princesas para ela por lá. “Eu quero o da Bela Adormecida, que é toda rosa e brilhante!”, disse ela, descrição essa que me foi lembrada diariamente, até o dia da viagem. “Crianças são tão insistentes que chegam a irritar”, pensava eu, para depois rir de mim mesmo ao lembrar da neve. “Crianças...”
Quando finalmente desembarcamos, fomos recebidos pelo Josué, e entre os habituais “que saudade!” e “sua menina já cresceu muito!”, fomos ao carro para seguirmos à casa dele. Mesmo faltando alguns dias para o feriado natalino, a rádio já tocava músicas da época, num programa chamado “Your holiday faves”, e ao ouvir Silent Night, lembrei de um disco de minha mãe que ela sempre punha quando chegava a véspera de natal, com “Noite Feliz”.
“Pelo menos aqui eles não tocam ‘Então é Natal’” - Josué interrompe mais um devaneio e é seguido por gargalhadas de todos, o que me fez voltar à realidade e perceber que já estávamos na área de subúrbio onde ele mora. Mesmo me sentindo imerso em um daqueles filmes que tanto gostava, uma coisa me afligia - não via neve em lugar algum! “É porque esse ano está demorando a chegar, também estou estranhando”, respondeu-me enquanto tirávamos as malas do carro.
Cumprimentamos a esposa dele, que nos esperava com chocolate quente e de braços abertos, e depois de alguns minutos conversando sobre a viagem e o impacto que é sair de um verão tão quente para um inverno tão frio como aquele, fomos aos aposentos que ocuparíamos naquela estadia. Aproveitamos para passear bastante nos dias antes do feriado, e mesmo sendo surpreendido por coros cantando pela rua ou me animando com a felicidade de minha filha em usar seu vestido, rosado e cheio de glitter, ainda ficava angustiado por uma dúvida: “por que não nevou ainda?!”
E assim, chegamos ao dia 24 de dezembro. A ceia estava quase pronta, e nesse meio tempo me distraía vendo na TV imagens de outras localidades em que a neve havia caído e eles já faziam a festa que eu tanto queria fazer. “Mas como ficou lindo esse anjo de neve!”, exclamou Isabella, a esposa de Josué, nos chamando logo depois para finalmente sentar à mesa e começar as comemorações. Depois de agradecermos pela refeição, ela pediu licença para falar sobre o significado do natal, e nos presenteou com as seguintes palavras:
“Antes mesmo de Jesus ter nascido, o solstício de inverno já era motivo de comemoração entre os antigos, uma vez que ele representava o renascimento do sol em direção a seu ápice, no solstício de verão. E o mais importante nessa época é lembrar que todas as almas podem passar por períodos de completa escuridão, como é o caso dessa noite, mas tão pronto o dia amanheça, a luz recomeça seu tranquilo percurso para que em pouco tempo, volte a iluminar nossos corações. E crer nisso, meus amigos, é o que nos sustenta perante toda e qualquer incerteza - elas passam. Assim como passam as alegrias, as dores também hão de passar. E quem está vivo, nisso acredita, por mais que não consiga aceitar. Brindemos à esperança, brindemos ao que há de bom para nos salvar!”
Depois de um caloroso brinde, em que quase derramei o conteúdo de minha taça no peru sobre a mesa, sentamos, conversamos e fomos uma família até a hora de deitar. Após beijar minha esposa, deito minha cabeça no travesseiro e subitamente me lembro: “e a neve, por onde anda?”. Não demorou muito, e acabei adormecendo sem mais hesitar.
“Neve! Pai, tem neve!”
Sou acordado por Aurora com seus gritos de alegria, e quando consegui formalizar o que ela havia me dito, senti-me como se tivesse acabado de engolir uma pedra! “Finalmente eu vou conhecer a neve...”, pensava alto, e ao mesmo tempo que me trocava, sentia um terror súbito de ir lá fora. Aquilo ia e vinha, até me fazer ficar sentado por algum tempo refletindo se era tudo verdade. “Vem logo, amor, a menina quer brincar com você!” - Marília me fazia acordar pela segunda vez, e agora sim saíra do quarto.
Ao pisar naquele tapete branco, sentindo o ar frio invadindo meus pulmões, permaneci um tempo parado, como se ainda estivesse tentando acreditar. Foi aí que Aurora jogou uma bola de neve nas minhas costas e, finalmente, abri um sorriso que nem os coros, nem o chocolate quente ou qualquer outra coisa daquele lugar haviam me proporcionado - foi quando fiz a minha primeira bola e joguei contra Marília, e assim, começamos nossa brincadeira! Josué e Isabella ficavam nos olhando com se fôssemos 3 crianças comendo melaço pela primeira vez, até que ele, após levar uma bolada minha, desceu e me ajudou a fazer meu primeiro boneco de neve! “Felicidade branca, felicidade alva!” - era só nisso que pensava!
Passada a excitação do momento, aproveitei que todos haviam entrado pra se esquentar e fiquei sentado, na varanda da casa, observando um pouco o movimento da rua. Foi quando avistei uma senhorinha, de baixa estatura e longos cabelos grisalhos, visíveis mesmo com o gorro que ela usava, passando umas casas à frente. De imediato, lembrei de minha mãe. Quase que instintivamente, desci a escada na entrada da casa e fui ao encontro dela, como se tivesse algo a lhe dizer - foi quando um das sacolas que ela trazia caiu no chão, e me precipitei para recolhê-la. Ao subir minha vista e olhar para seu rosto, senti-me estranho por confirmar que não era ela.
“Oh, thank you, sir!”
“De nad- oh, you’re welcome, lady”
Ela me deu um sorriso cortês antes de seguir seu caminho. Retribuí, sorrindo de forma desconcertada, e voltei para casa. “You’re not there”, no rádio alguém cantava.
Subi ao quarto, e chorei.
Chorei todas as lágrimas que podia chorar, e senti os pingos caindo como cachoeira sobre minhas pernas, ainda um pouco geladas. Foi aí que Marília, ouvindo do corredor meus soluços, chamou Aurora para falar comigo. Minha menina entrou no quarto, perguntando porque seu papai chorava e então veio me abraçar.
A segurei em meus braços, disse que estava tudo bem.
E ela sorriu para mim.
Ela sorriu para mim.
De repente, lembrei das palavras de Isabella, naquela mesa de jantar:
“Assim como passam as alegrias, as dores também hão de passar. E quem está vivo, nisso acredita, por mais que não consiga aceitar. Brindemos à esperança, brindemos ao que há de bom para nos salvar!”
Foi quando Marília também entrou para me abraçar. E ao tê-las do meu lado, no mais completo silêncio, eu soube que ela também estava lá. Fechei os olhos e senti de súbito meu coração esquentar...
Você estava lá.
Você estava lá.
And all is calm... All is bright
---
Hernando Siqueira Neto, 25 anos. Uma pessoa que aproveita bastante seu ócio criativo e sua suposta solidão. E que vive pensando em Marianne.
domingo, 11 de novembro de 2012
Flavors: Y Kant Tori Read
O Y Kant Tori Read é um álbum de rompimento. Mesmo sendo aquele exagero sonoro e visual (especialmente pelo spray para cabelo que exala do encarte, rs), o disco tem letras extremamente emocionais, e algumas de suas músicas são tocadas até hoje por Tori (Cool On Your Island, Etienne). Admito que me surpreendi ao terminar suas traduções, me sentindo assim na obrigação de incluí-lo na série Flavors e convidando o Felipe Colmenero, autor do cativante texto sobre o Scarlet's Walk, a contribuir mais uma vez para o blog. Aqui está o ótimo resultado de seu esforço: uma viagem não-linear, indecisa sobre ser ou não ser uma bad trip, mas cheia de personalidade e, por que não, carão? Let's see the Big Picture...
PARTE I
"Mas como isso é brega!" Ele diz.
"Meu amor" — eu digo — "nos anos 80 todo mundo tinha que pagar o aluguel e fazer um permanente, era o último grito da moda em Milão."
Nos conhecemos e ouvimos Y Kant Tori Read em 2006.
PARTE II
Sentei num restaurante numa quinta feira e fui comer um rolinho primaveira. Só um rolinho primavera, um temakizinho e curtir a chuva. Tô no Brasil, sou brasiliense e queria comer comida japonesa. Eu não sei LIBRAS, e não sou surdo, mas eu, como bom ator que finge ser italiano, eu só falo gesticulando. E fazer um bom molho vermelho.
Saiu de dentro de mim vermelho naquela primeira vez, sabia?
E lá, bom lá estava. No restaurante. Quem estava, ele com seu novo amor?
Mudei de mesa pra me esconder deles. Eu os vi. E fui visto. Senti a vergonha de ser quem eu era.
Eu, com meus bregas cabelos vermelhos bagunçados, senti o constrangimento.
Eu gesticulei, apreensivo, no meu pseudo linguagem de sinais: — eu não sabia. Eu não sabia que você estaria aqui.
Naquele restaurante, fiz o mesmo gesto que fiz a ele naquele dia mesmo, no motel. Quando o abandonei, no motel que sempre iamos juntos.
Ele acordou frio.
Tava chovendo horrores e desci pra pegar o carro. Adivinha...
A janela tava quebrada, o carro fudido, arrombaram meu carro! Roubaram minhas coisas...
Fayth.
Tenha fé.
Ligo pro seguro, pro guincho, ligo pro taxi. Nada. Ligo pra você. Mesma coisa.
O taxista, ao menos, finalmente foi me buscar, me viu... o cliente tinha cabelo ruivo, vermelho, rosa, arrepiado e bagunçado, umas botas sujas e ao me buscar, ele já sabia que eu era uma puta de fé. Como deve ser toda pessoa que pede um taxi ao sair do motel.
Fayth tem fogo ao lado.
PARTE III
Fogo ao lado direito da cama (ele sempre dorme no lado direito da cama).
Fogo ao lado (ele sempre senta no banco do passageiro quando eu o busco em casa). Fogo ao lado (ele sempre me chama de puta).
Fogo ao lado (porque eu sempre ... bom, eu sempre sento e me sinto perto do frio).
PARTE IV
O taxista viu a puta e me perguntou: — você está bem?
Não.
Seria a resposta sincera.
Eu, com meu cabelo com permanente, e meu sorriso disse: — tô bem, mas parece que a cidade tá flutuando, nessa chuva! Tudo tá derrapando... a gente deveria ter cuidado em como a gente dirige. Tem tanta água que pode até aparecer um barco no meio de Brasília.
Com os piratas.
Estou tão longe de casa, ele nesse motel quebrou minhas joias. Porra... espero que esteja ardendo nele assim como tá ardendo em mim agora. Ardendo bem naquele lugar... Ao menos ele pagou a conta do motel.
— Porque você pediu um taxi?
— Porque arrombaram meu carro e eu preciso voltar pra casa pra pegar os documentos do seguro.
tsc tsc tsc... coisas em que a gente finge que acredita.
Não, eu sou uma puta. Eu sou um vendedor. Eu sou o amante.
Eu sou o amante emocional ou o amante cheio de lascívia melancólica?
Porque nosso sexo é bom, mas tampouco é satisfatório. E se eu sou o amante emocional... o sexo é unilateral. Ele quer atiçar minha admiração. Se ele me tratasse com respeito, eu não teria fugido.
Merda... quebraram meu carro... esses 50 reais nem vão ser suficientes pro taxi...
PARTE VI
Sabe quando você quer comer um rolinho primavera no seu restaurante predileto.
— Nossa, como deu vontade de ir naquela temakeria na 209 sul e comer aquele temaki e rolinho primavera! Só quero o temaki e o rolinho. Eu nunca quero aquele gengibre e aquele nabo e a cenourinha ralada que vem de acompanhamento, mas acabo comendo só pra não desperdiçar meu dinheiro.
Eu sou o acompanhamento. O prato que vem junto e que no fim a gente acaba comendo.
E ele não desperdiçou o dinheiro dele.
PARTE VI
Saindo do restaurante, eu sou o que gesticula. sempre sento agora no banco do lado, ardo no banco do lado e, como sou destro, logo, fica mais fácil para fazer aquilo que você já sabe que homens fazem na calada da noite dentro do carro, aquilo que você sabe que está ao meu lado. Mas escondido dentro de um zíper.
A cidade está alagada de chuva, mas quando você vai me levar pra sua cidade flutuante. Onde não há frieza, água salgada e os todos... etceteras...
Ele estava aqui. Mas o outro (d)ele, não.
O outro está dormindo em sua casa, calmo, aconchegado. Esperando ele chegar e dormirem quentinhos, de conchinha.
PARTE VII
Fayth tá com o carro fudido e pegou um táxi.
O taxista começa a bater papo. Finalmente ele percebe que eu não estou bem. Eu tento desconversar.
—O que houve?!
Primeiro sinal de compaixão com o garoto esquisito que ele pegou no motel com cabelo vermelho bagunçado de quem acabou de trepar e marcas vermelhas no rosto.
—Meu braço esquerdo tá dormente e estou com dor de cabeça e sentido meu peito pesado. E eu não to conseguindo respirar...
— Isso pode ser um enfarto! Mas você é tão bonito e jovem, quantos anos tens, uns 23? — Não... tenho quase 27...
I'm loving him too much.
— Quer que eu te deixe no hospital?
— Não, eu tô bem. É só ansiedade, e fome. Pode me deixar ali na 209 norte, quero comer um rolinho primaveira e ir pra casa. Moro por ali mesmo.
Sento a mesa, controlando minha tremedeira e minha dormência no braço esquerdo. Olho pra frente. Ele. E ele. Juntos. Escuto por alto: — olha quem tá ali...o Felipe.
You took my love, you took my money, you took my sex. Why am I afraid of change? Kiss goobye.
Eu faria tudo de graça. E com prazer. Mas arde, não?
PARTE VIII
Com o braço dormente, eu gesticulo: Eu não sabia. Eu não sabia que você estava aqui. Eu não te segui.
O outro, percebe que há um pária conhecido (será que a outra puta está por perto?), se volta pra trás e me olha com desaprovo. Eles pedem a conta e saem.
Why I was there for you? You won't even let me keep you from falling from the boundary that divides our love...
No caminho, escondido do namorado dele, ele toca no meu pulso e me dá um olhar. Sua pele estava pegando fogo. Fire on the side, no meu pulso direito. Suspirou, friamente, no meu ouvido: — eu queria terra estável, mas você preferiu se afundar. Você me disse que estava infeliz. Eu sempre estive ao seu lado, mas acho que eu não era o suficiente.
PARTE IX
Meu corpo também é uma ilha. Como meu carro é uma ilha. Como Brasília é uma ilha.
Minha ilha está congelante.
PARTE X
Sento um dia, naquela temakeria. E eu achando italiano gesticulo... escondidamente:
Eu não sabia que voce estava aqui!
Alguem fudeu com meu carro. No dia que eu descobri que você... bom... você estava admirando as coxas de outra puta. Porra velho, sou sua puta e você agora nem quis me ver.
Sabe o que é interessante em carros? Eles se parecem com ilhas. Simples e claramente, nao dá pra fugir. As ilhas no frio, bem tu tens de ter corrones pra fugir. Abrir a porta do carro em movimento. Desliga esse ar condicionado que não to aguentando o frio! Arde quando, tuas botas arrastam no asfalto antes mesmo do carro parar, quando você pula fora da
ilha.
PARTE XI
Eu tava no meu carro. Eu estava no meu carro, fugindo. A porta estava quase pegando fogo depois do acidente. Era muito fogo ao meu lado. Não era mais um taxista, mas eu precisava de mais dinheiro.
Acho que ele gostou do meu cabelo ruivo, do meu permanente. Das minhas botas de couro.
E gostou da espada que eu carregava.
PARTE XII
Eu não sabia que você estaria aqui
.
Foi um acidente de carro.
Tsc tsc tsc tsc tsc tsc
Quando a gente precisa de um segurança, ele rouba sua cueca.
O seguro, não atende, mas o taxista atende. E cobra 45 reais. Pra me levar na oficina. Ele me olha com aquele olhar e pensa, essa puta deve ganhar menos de 50 reais, já dá pra saber por esse cabelo e essas botas.
Quantas vezes eu estive no banco do passageiro?
PARTE XII
Minha ilha está congelante.
Minha ilha está congelada.
---
Felipe Colmenero
26 anos e ainda preso à nostalgia e às saudades do que ainda não veio. Pensa que é um autista plástico, escritor ninfomaníaco e cozinheiro de mão cheia, mas o que faz de melhor é ser cantor desafinado de karaokê, beber vodka barata e escrever poemas nas paredes da casa com péssima caligrafia. Brasiliense aquariano com ascendente em aquário, logo um arrogante cínico e/ou um ativista esquizofrênico que chora escondidinho no chuveiro, Enquanto pinta o cabelo de rosa, Sou uma imitação de mim mesmo.
PARTE I
"Mas como isso é brega!" Ele diz.
"Meu amor" — eu digo — "nos anos 80 todo mundo tinha que pagar o aluguel e fazer um permanente, era o último grito da moda em Milão."
Nos conhecemos e ouvimos Y Kant Tori Read em 2006.
PARTE II
Sentei num restaurante numa quinta feira e fui comer um rolinho primaveira. Só um rolinho primavera, um temakizinho e curtir a chuva. Tô no Brasil, sou brasiliense e queria comer comida japonesa. Eu não sei LIBRAS, e não sou surdo, mas eu, como bom ator que finge ser italiano, eu só falo gesticulando. E fazer um bom molho vermelho.
E lá, bom lá estava. No restaurante. Quem estava, ele com seu novo amor?
Mudei de mesa pra me esconder deles. Eu os vi. E fui visto. Senti a vergonha de ser quem eu era.
Eu, com meus bregas cabelos vermelhos bagunçados, senti o constrangimento.
Eu gesticulei, apreensivo, no meu pseudo linguagem de sinais: — eu não sabia. Eu não sabia que você estaria aqui.
Naquele restaurante, fiz o mesmo gesto que fiz a ele naquele dia mesmo, no motel. Quando o abandonei, no motel que sempre iamos juntos.
Ele acordou frio.
Tava chovendo horrores e desci pra pegar o carro. Adivinha...
A janela tava quebrada, o carro fudido, arrombaram meu carro! Roubaram minhas coisas...
Fayth.
Tenha fé.
Ligo pro seguro, pro guincho, ligo pro taxi. Nada. Ligo pra você. Mesma coisa.
O taxista, ao menos, finalmente foi me buscar, me viu... o cliente tinha cabelo ruivo, vermelho, rosa, arrepiado e bagunçado, umas botas sujas e ao me buscar, ele já sabia que eu era uma puta de fé. Como deve ser toda pessoa que pede um taxi ao sair do motel.
Fayth tem fogo ao lado.
PARTE III
Fogo ao lado direito da cama (ele sempre dorme no lado direito da cama).
Fogo ao lado (ele sempre senta no banco do passageiro quando eu o busco em casa). Fogo ao lado (ele sempre me chama de puta).
Fogo ao lado (porque eu sempre ... bom, eu sempre sento e me sinto perto do frio).
PARTE IV
O taxista viu a puta e me perguntou: — você está bem?
Não.
Seria a resposta sincera.
Eu, com meu cabelo com permanente, e meu sorriso disse: — tô bem, mas parece que a cidade tá flutuando, nessa chuva! Tudo tá derrapando... a gente deveria ter cuidado em como a gente dirige. Tem tanta água que pode até aparecer um barco no meio de Brasília.
Com os piratas.
Estou tão longe de casa, ele nesse motel quebrou minhas joias. Porra... espero que esteja ardendo nele assim como tá ardendo em mim agora. Ardendo bem naquele lugar... Ao menos ele pagou a conta do motel.
— Porque você pediu um taxi?
— Porque arrombaram meu carro e eu preciso voltar pra casa pra pegar os documentos do seguro.
tsc tsc tsc... coisas em que a gente finge que acredita.
Não, eu sou uma puta. Eu sou um vendedor. Eu sou o amante.
Eu sou o amante emocional ou o amante cheio de lascívia melancólica?
Porque nosso sexo é bom, mas tampouco é satisfatório. E se eu sou o amante emocional... o sexo é unilateral. Ele quer atiçar minha admiração. Se ele me tratasse com respeito, eu não teria fugido.
Merda... quebraram meu carro... esses 50 reais nem vão ser suficientes pro taxi...
PARTE VI
Sabe quando você quer comer um rolinho primavera no seu restaurante predileto.
— Nossa, como deu vontade de ir naquela temakeria na 209 sul e comer aquele temaki e rolinho primavera! Só quero o temaki e o rolinho. Eu nunca quero aquele gengibre e aquele nabo e a cenourinha ralada que vem de acompanhamento, mas acabo comendo só pra não desperdiçar meu dinheiro.
Eu sou o acompanhamento. O prato que vem junto e que no fim a gente acaba comendo.
E ele não desperdiçou o dinheiro dele.
PARTE VI
Saindo do restaurante, eu sou o que gesticula. sempre sento agora no banco do lado, ardo no banco do lado e, como sou destro, logo, fica mais fácil para fazer aquilo que você já sabe que homens fazem na calada da noite dentro do carro, aquilo que você sabe que está ao meu lado. Mas escondido dentro de um zíper.
A cidade está alagada de chuva, mas quando você vai me levar pra sua cidade flutuante. Onde não há frieza, água salgada e os todos... etceteras...
Ele estava aqui. Mas o outro (d)ele, não.
O outro está dormindo em sua casa, calmo, aconchegado. Esperando ele chegar e dormirem quentinhos, de conchinha.
PARTE VII
Fayth tá com o carro fudido e pegou um táxi.
O taxista começa a bater papo. Finalmente ele percebe que eu não estou bem. Eu tento desconversar.
—O que houve?!
Primeiro sinal de compaixão com o garoto esquisito que ele pegou no motel com cabelo vermelho bagunçado de quem acabou de trepar e marcas vermelhas no rosto.
—Meu braço esquerdo tá dormente e estou com dor de cabeça e sentido meu peito pesado. E eu não to conseguindo respirar...
— Isso pode ser um enfarto! Mas você é tão bonito e jovem, quantos anos tens, uns 23? — Não... tenho quase 27...
I'm loving him too much.
— Quer que eu te deixe no hospital?
— Não, eu tô bem. É só ansiedade, e fome. Pode me deixar ali na 209 norte, quero comer um rolinho primaveira e ir pra casa. Moro por ali mesmo.
Sento a mesa, controlando minha tremedeira e minha dormência no braço esquerdo. Olho pra frente. Ele. E ele. Juntos. Escuto por alto: — olha quem tá ali...o Felipe.
You took my love, you took my money, you took my sex. Why am I afraid of change? Kiss goobye.
Eu faria tudo de graça. E com prazer. Mas arde, não?
PARTE VIII
Com o braço dormente, eu gesticulo: Eu não sabia. Eu não sabia que você estava aqui. Eu não te segui.
O outro, percebe que há um pária conhecido (será que a outra puta está por perto?), se volta pra trás e me olha com desaprovo. Eles pedem a conta e saem.
Why I was there for you? You won't even let me keep you from falling from the boundary that divides our love...
No caminho, escondido do namorado dele, ele toca no meu pulso e me dá um olhar. Sua pele estava pegando fogo. Fire on the side, no meu pulso direito. Suspirou, friamente, no meu ouvido: — eu queria terra estável, mas você preferiu se afundar. Você me disse que estava infeliz. Eu sempre estive ao seu lado, mas acho que eu não era o suficiente.
PARTE IX
Meu corpo também é uma ilha. Como meu carro é uma ilha. Como Brasília é uma ilha.
Minha ilha está congelante.
PARTE X
Sento um dia, naquela temakeria. E eu achando italiano gesticulo... escondidamente:
Eu não sabia que voce estava aqui!
Alguem fudeu com meu carro. No dia que eu descobri que você... bom... você estava admirando as coxas de outra puta. Porra velho, sou sua puta e você agora nem quis me ver.
Sabe o que é interessante em carros? Eles se parecem com ilhas. Simples e claramente, nao dá pra fugir. As ilhas no frio, bem tu tens de ter corrones pra fugir. Abrir a porta do carro em movimento. Desliga esse ar condicionado que não to aguentando o frio! Arde quando, tuas botas arrastam no asfalto antes mesmo do carro parar, quando você pula fora da
ilha.
PARTE XI
Eu tava no meu carro. Eu estava no meu carro, fugindo. A porta estava quase pegando fogo depois do acidente. Era muito fogo ao meu lado. Não era mais um taxista, mas eu precisava de mais dinheiro.
Acho que ele gostou do meu cabelo ruivo, do meu permanente. Das minhas botas de couro.
E gostou da espada que eu carregava.
PARTE XII
Eu não sabia que você estaria aqui
.
Foi um acidente de carro.
Tsc tsc tsc tsc tsc tsc
Quando a gente precisa de um segurança, ele rouba sua cueca.
O seguro, não atende, mas o taxista atende. E cobra 45 reais. Pra me levar na oficina. Ele me olha com aquele olhar e pensa, essa puta deve ganhar menos de 50 reais, já dá pra saber por esse cabelo e essas botas.
Quantas vezes eu estive no banco do passageiro?
PARTE XII
Minha ilha está congelante.
Minha ilha está congelada.
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Felipe Colmenero
26 anos e ainda preso à nostalgia e às saudades do que ainda não veio. Pensa que é um autista plástico, escritor ninfomaníaco e cozinheiro de mão cheia, mas o que faz de melhor é ser cantor desafinado de karaokê, beber vodka barata e escrever poemas nas paredes da casa com péssima caligrafia. Brasiliense aquariano com ascendente em aquário, logo um arrogante cínico e/ou um ativista esquizofrênico que chora escondidinho no chuveiro, Enquanto pinta o cabelo de rosa, Sou uma imitação de mim mesmo.
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
Flavors: From The Choirgirl Hotel
É um pouco difícil encontrar palavras para descrever o texto escrito por Lucas Vosch (facebook) para a série Flavors. Mas, de forma grosseira, trata-se de um mergulho no envolvente universo subaquático e de tons escuros que é o From The Choirgirl Hotel. Nele, somos apresentados ao mais fundo deste submundo, onde lamento, luxúria, revolta e reminiscências (até de coisas que não aconteceram) misturam-se num amalgáma indissolúvel e líquido. Líquidos. Diamantes líquidos. Aconselho a irem buscá-los nessas palavras.
Hotéis são lugares de inconstância, constante e inquieto fluxo de pessoas, dinheiro e interações humanas. Cada quarto guarda uma história em particular, mas por muito pouco tempo - as estruturas em concreto ficam, mas os hóspedes pagam sua estadia e partem.
Spark foi o primeiro quarto que visitei - um aposento de personalidade forte, encharcado, cheio de arestas oblíquas e muitas manchas de origem indecifrável. Saí sem sequer completar uma diária. Tori Amos (um nome que eu havia lido pela primeira vez muito antes de ouvir qualquer canção, e imaginado uma mulher esguia e indiana, de longos cabelos negros) era muito estranha, um aborto natural que ela deixa a entender ter desejado "sem querer"?
Mantive distância, desconfiado e muito chocado com essa primeira imagem. Mas depois de algumas outras portas abertas, me senti pronto e tentado a me hospedar novamente nesse hotel. Mas não era possível adentrar num passo - precisei de um mergulho.
O hotel era submarino, e identificar essa natureza me era essencial pra codificar e traduzir as histórias cantadas em cada quarto, todos submersos.
Spark era, na verdade, uma ameaça ao contrário, um ninar de lamento e arrependimento, um quarto de dúvida; não existia espaço pra gravidade terrena ali, bailarinas se equilibravam com barbatanas escondidas. Ainda escondia desconforto, mas com uma faísca de energia que eu suspeitava crescer em mim até o último metro quadrado.
O próximo quarto, Cruel, seguia as mesmas leis físicas, mas com refrações de luz diferentes - era uma espécie de festa, batidas insinuando sexo e um certo sadismo. A sinceridade não protegia quem ali estava dos tons de roxo e cinza, dessa dança frenética com o reconhecimento das próprias desvirtudes, afiadas e inevitáveis como a chuva. A faísca queimava mais ácida.
Pelas fechaduras de Black-Dove, um piano afogado insistia incansável, hipnotizador de cobras e de pessoas, se é que havia diferença. Esses aposentos eram contrastantes, sombras em soberania combatendo cantos que reluziam brancos e fortes. O amor pela vida e pelo oxigênio gritava, implorava por atenção, entre as algas que cresciam há décadas e já invadiam ameaçadoras seu chão, seus membros. O mesmo piano se despedia na hora certa, pingando.
Raspberry Swirl. Um quarto simples, lençóis limpos de qualquer estampa, água rubra envenenada por álcool que começa a fazer pequenos tornados, engolindo peixes e outras pequenas formas de vida. Defesas naturais de um organismo maior, talvez? O inebriante convidava, saudava, distraía habitantes do caos girante em volta, mas era uma euforia dependente do meu hálito, e cada quarto deve ter seu tempo. Deixei manchas de batom na minha saída.
Naquela suíte presidencial, o limo dominava os móveis acusando a grande passagem do tempo, mas um branco piano de cauda permanecia com uma leve e peculiar vibração no canto próximo à varanda. Jackie's Strength, a força residia na resistência contra o limo, a deterioração, era uma tradição que renascia com cada corda e cada pedal. A meia-luz era refletida nos porta-retratos, intactos e inúmeros, gerações conservadas pelas leves ondas oriundas daquele teclado que pulsava cardíaco.
Um pequeno corredor e uma escada me dirigiam ao bar, espaço de tamanho generoso, garrafas quebradas com seus conteúdos flutuantes envolviam todos os visitantes num abraço. Havia também fumaça submarina, resquícios de charutos e fragrâncias cerimoniais, e um grande holofote dirigido à área da banda. Iieee, cantava um eco fino de fantasmas em coro, quase imperceptíveis a olhos abertos. A faísca se dividia em desespero entre cada mesa, uma dissonância mórbida em cada taça: era um ritual em um templo interditado, e eu um invasor seduzido cegamente.
Me movi através da água e da curiosidade para o ambiente seguinte - a aparente redundância escandalosa de uma piscina submersa. Havia pouco pra observar, além de concreto frio e permanente. Mas eu estava sozinho, e a água era companhia, o fundo da piscina invisível. Nadei em direção ao fundo, e vi um brilho peculiar que não teria percebido de outra forma; eram jóias de oceanos estrangeiros que flutuavam impetuosas, uma fortuna mergulhada em uma piscina sem fim, brilhando em anil e esmeralda, me contando segredos de loucuras silenciadas e me oferecendo suas vozes. Eu era acolhido, e nunca havia sido tão provocado a permanecer no hotel, fugir da minha realidade terrena. Mas cedi ao açúcar visual e resolvi furtar uma jóia pra mim, jóia essa que me escorreu por entre os dedos, desperdiçando seu brilho. Era tudo miragem, água, Liquid Diamonds. Me apressei de volta à beira da piscina, estava mais consciente e meu objetivo novamente claro, a faísca sólida e interna.
Daquele momento, uma correnteza me levava a um quarto, terceiro andar, um caminho incendiado (mais propriedades físicas individuais). Fogo intangível, She's Your Cocaine, a figura flamejante desafiava meu controle e meus medos, com suas chamas acariciadoras dos móveis, ela parecia ter feições humanas, familiares. Era um quarto pequeno, mas expandido por espelhos nas paredes, que construíam um mosaico abrasivo com o fogo e me despiam de pele e pelos mortos. A água era um desafio a todos os elementos ali.
Northern Lad contradizia, era o elevador que sibilava o norte em suas engrenagens, mas me conduzia para baixo. A temperatura caía conforme os andares iam diminuindo de número, e as luzes passando ligeiras pela fresta entre as portas. As paredes pareciam comprimir o espaço proporcionalmente, sufocando; condições tão inóspitas naquele cubículo me lembravam tempestades contidas entre quatro paredes. E o sul não perdia velocidade. Minha persistência era suicida.
As portas se abriam, então, para o que seria o lobby de entrada do Hotel, mas sou recebido com explosões em meio a uma escuridão que só poderia pertencer a um reduto subterrâneo. Uma corrente de vento forte, fogos de artifício e mais nada: um saguão gigantesco sem formas ou objetos distinguíveis além das luzes abafadas pela água (contudo, nada intimidadas). Procurei silhuetas perdidas em meio ao caos, mas era inútil, os relâmpagos eram personalidades numerosas e suficientes para lotarem o lugar. Violência luminosa populava aquele nadir do pensamento, e a sensação de inevitabilidade era difícil sequer de entender, quanto mais superar - mas era um fenômeno necessário, pois a faísca continuava a evoluir. Não era ainda o momento de abandonar a minha estadia pela porta da frente. Pisquei para aliviar a aspereza aveludada que machucava meus olhos, e estava lá.
O quarto da mãe, de longe o mais aquecido de todos, transmitia uma segurança torta, lacrimejada. Sofás e camas, era quase totalmente almofadado, como um jardim ocluso. Era também o quarto emudecido, um silêncio de contemplação e lamento. O único som vinha do odor do momento perdido, e todos os momentos consequentes, abortados. Suspensas na água morna eu via pétalas da flor que teria sido, uma flor gêmea de todo o estofamento que tentava compensar. A faísca me olhou, com olhos amadurecidos, e voltou pro meu peito muito mais pesada. Playboy Mommy.
Minha saída foi oportuna, já podia e queria observar onde estava contido esse prédio de água e histórias, o aquário da imensidão de um oceano. Ali, passado e presente se dissolviam, tudo era respirado e inchava pulmões. Era impossível não sentir o fim da jornada nas minhas mãos enrugadas, nas ondulações que eu transmitia naturalmente e que se debruçavam sobre o vidro, voltando pra mim com uma intensidade distinta. Eu era o arquivo de tudo vivido ali, já era submarino, com minhas próprias barbatanas secretas. Na certeza dessa transmutação, e da transmutação da faísca - agora, uma concha madura e pertencente ao seu mundo -, suspirei pela última vez.
Algum desses infinitos quartos, desde então, eu habito arenoso, mineral debaixo da água.
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Lucas Vosch prefere o abstrato e o surreal ao palpável, o feminino ao masculino, o frio ao calor, e o brócolis à couve-flor.
(Blog Pessoal do Lucas: The Sea of Waking Dreams)
Hotéis são lugares de inconstância, constante e inquieto fluxo de pessoas, dinheiro e interações humanas. Cada quarto guarda uma história em particular, mas por muito pouco tempo - as estruturas em concreto ficam, mas os hóspedes pagam sua estadia e partem.
Spark foi o primeiro quarto que visitei - um aposento de personalidade forte, encharcado, cheio de arestas oblíquas e muitas manchas de origem indecifrável. Saí sem sequer completar uma diária. Tori Amos (um nome que eu havia lido pela primeira vez muito antes de ouvir qualquer canção, e imaginado uma mulher esguia e indiana, de longos cabelos negros) era muito estranha, um aborto natural que ela deixa a entender ter desejado "sem querer"?
Mantive distância, desconfiado e muito chocado com essa primeira imagem. Mas depois de algumas outras portas abertas, me senti pronto e tentado a me hospedar novamente nesse hotel. Mas não era possível adentrar num passo - precisei de um mergulho.
O hotel era submarino, e identificar essa natureza me era essencial pra codificar e traduzir as histórias cantadas em cada quarto, todos submersos.
Spark era, na verdade, uma ameaça ao contrário, um ninar de lamento e arrependimento, um quarto de dúvida; não existia espaço pra gravidade terrena ali, bailarinas se equilibravam com barbatanas escondidas. Ainda escondia desconforto, mas com uma faísca de energia que eu suspeitava crescer em mim até o último metro quadrado.
O próximo quarto, Cruel, seguia as mesmas leis físicas, mas com refrações de luz diferentes - era uma espécie de festa, batidas insinuando sexo e um certo sadismo. A sinceridade não protegia quem ali estava dos tons de roxo e cinza, dessa dança frenética com o reconhecimento das próprias desvirtudes, afiadas e inevitáveis como a chuva. A faísca queimava mais ácida.
Pelas fechaduras de Black-Dove, um piano afogado insistia incansável, hipnotizador de cobras e de pessoas, se é que havia diferença. Esses aposentos eram contrastantes, sombras em soberania combatendo cantos que reluziam brancos e fortes. O amor pela vida e pelo oxigênio gritava, implorava por atenção, entre as algas que cresciam há décadas e já invadiam ameaçadoras seu chão, seus membros. O mesmo piano se despedia na hora certa, pingando.
Raspberry Swirl. Um quarto simples, lençóis limpos de qualquer estampa, água rubra envenenada por álcool que começa a fazer pequenos tornados, engolindo peixes e outras pequenas formas de vida. Defesas naturais de um organismo maior, talvez? O inebriante convidava, saudava, distraía habitantes do caos girante em volta, mas era uma euforia dependente do meu hálito, e cada quarto deve ter seu tempo. Deixei manchas de batom na minha saída.
Naquela suíte presidencial, o limo dominava os móveis acusando a grande passagem do tempo, mas um branco piano de cauda permanecia com uma leve e peculiar vibração no canto próximo à varanda. Jackie's Strength, a força residia na resistência contra o limo, a deterioração, era uma tradição que renascia com cada corda e cada pedal. A meia-luz era refletida nos porta-retratos, intactos e inúmeros, gerações conservadas pelas leves ondas oriundas daquele teclado que pulsava cardíaco.
Um pequeno corredor e uma escada me dirigiam ao bar, espaço de tamanho generoso, garrafas quebradas com seus conteúdos flutuantes envolviam todos os visitantes num abraço. Havia também fumaça submarina, resquícios de charutos e fragrâncias cerimoniais, e um grande holofote dirigido à área da banda. Iieee, cantava um eco fino de fantasmas em coro, quase imperceptíveis a olhos abertos. A faísca se dividia em desespero entre cada mesa, uma dissonância mórbida em cada taça: era um ritual em um templo interditado, e eu um invasor seduzido cegamente.
Me movi através da água e da curiosidade para o ambiente seguinte - a aparente redundância escandalosa de uma piscina submersa. Havia pouco pra observar, além de concreto frio e permanente. Mas eu estava sozinho, e a água era companhia, o fundo da piscina invisível. Nadei em direção ao fundo, e vi um brilho peculiar que não teria percebido de outra forma; eram jóias de oceanos estrangeiros que flutuavam impetuosas, uma fortuna mergulhada em uma piscina sem fim, brilhando em anil e esmeralda, me contando segredos de loucuras silenciadas e me oferecendo suas vozes. Eu era acolhido, e nunca havia sido tão provocado a permanecer no hotel, fugir da minha realidade terrena. Mas cedi ao açúcar visual e resolvi furtar uma jóia pra mim, jóia essa que me escorreu por entre os dedos, desperdiçando seu brilho. Era tudo miragem, água, Liquid Diamonds. Me apressei de volta à beira da piscina, estava mais consciente e meu objetivo novamente claro, a faísca sólida e interna.
Daquele momento, uma correnteza me levava a um quarto, terceiro andar, um caminho incendiado (mais propriedades físicas individuais). Fogo intangível, She's Your Cocaine, a figura flamejante desafiava meu controle e meus medos, com suas chamas acariciadoras dos móveis, ela parecia ter feições humanas, familiares. Era um quarto pequeno, mas expandido por espelhos nas paredes, que construíam um mosaico abrasivo com o fogo e me despiam de pele e pelos mortos. A água era um desafio a todos os elementos ali.
Northern Lad contradizia, era o elevador que sibilava o norte em suas engrenagens, mas me conduzia para baixo. A temperatura caía conforme os andares iam diminuindo de número, e as luzes passando ligeiras pela fresta entre as portas. As paredes pareciam comprimir o espaço proporcionalmente, sufocando; condições tão inóspitas naquele cubículo me lembravam tempestades contidas entre quatro paredes. E o sul não perdia velocidade. Minha persistência era suicida.
As portas se abriam, então, para o que seria o lobby de entrada do Hotel, mas sou recebido com explosões em meio a uma escuridão que só poderia pertencer a um reduto subterrâneo. Uma corrente de vento forte, fogos de artifício e mais nada: um saguão gigantesco sem formas ou objetos distinguíveis além das luzes abafadas pela água (contudo, nada intimidadas). Procurei silhuetas perdidas em meio ao caos, mas era inútil, os relâmpagos eram personalidades numerosas e suficientes para lotarem o lugar. Violência luminosa populava aquele nadir do pensamento, e a sensação de inevitabilidade era difícil sequer de entender, quanto mais superar - mas era um fenômeno necessário, pois a faísca continuava a evoluir. Não era ainda o momento de abandonar a minha estadia pela porta da frente. Pisquei para aliviar a aspereza aveludada que machucava meus olhos, e estava lá.
O quarto da mãe, de longe o mais aquecido de todos, transmitia uma segurança torta, lacrimejada. Sofás e camas, era quase totalmente almofadado, como um jardim ocluso. Era também o quarto emudecido, um silêncio de contemplação e lamento. O único som vinha do odor do momento perdido, e todos os momentos consequentes, abortados. Suspensas na água morna eu via pétalas da flor que teria sido, uma flor gêmea de todo o estofamento que tentava compensar. A faísca me olhou, com olhos amadurecidos, e voltou pro meu peito muito mais pesada. Playboy Mommy.
Minha saída foi oportuna, já podia e queria observar onde estava contido esse prédio de água e histórias, o aquário da imensidão de um oceano. Ali, passado e presente se dissolviam, tudo era respirado e inchava pulmões. Era impossível não sentir o fim da jornada nas minhas mãos enrugadas, nas ondulações que eu transmitia naturalmente e que se debruçavam sobre o vidro, voltando pra mim com uma intensidade distinta. Eu era o arquivo de tudo vivido ali, já era submarino, com minhas próprias barbatanas secretas. Na certeza dessa transmutação, e da transmutação da faísca - agora, uma concha madura e pertencente ao seu mundo -, suspirei pela última vez.
Algum desses infinitos quartos, desde então, eu habito arenoso, mineral debaixo da água.
---
Lucas Vosch prefere o abstrato e o surreal ao palpável, o feminino ao masculino, o frio ao calor, e o brócolis à couve-flor.
(Blog Pessoal do Lucas: The Sea of Waking Dreams)
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terça-feira, 6 de novembro de 2012
Flavors: Night of Hunters
Flavio Andrade (facebook), responsável por dar vida ao Night of Hunters para a série Flavors, chegou a mim por indicação de uma amiga em comum, que me garantia o tempo todo: "ele escreve super bem, pode confiar!" - fico feliz pela escolha, mais do que acertada para a primeira grande aventura de Tori na música clássica. E ler seu texto não só cria a vontade de revisitar o disco: também nos dá novas pistas para conhecê-lo melhor, bem como atiça a curiosidade sobre o futuro artístico de Amos, e até de sua filha, Tash. Mas por enquanto, "Out there are hunters..."
Quando li que Tori Amos havia assinado com a Deutsche Grammophon, levei um susto. E fiquei curioso ao tomar conhecimento do projeto de usar composições clássicas. Apesar de reconhecer a música de Bach nos primeiros acordes de “Edge of the Moon”, e relembrar com satisfação de “Pictures at na Exhibition” via Emerson, Lake & Palmer em “The Chase”, música erudita está há léguas de ser minha especialidade. Então, não tenho como opinar a respeito de como a compositora revisitou esses velhos clássicos. Portanto, encaro Night of Hunters humildemente como mais um disco da Tori. De qualquer forma, não deixa de ser charmoso ver aquele selo classudo da gravadora alemã na contracapa do álbum.
Seria natural que a primeira coisa a chamar a atenção fosse a estrutura clássica e a orquestração das músicas, certo? Mas nada é óbvio quando se trata de Tori Amos. O que acabou chamando a minha atenção na primeira audição foram aquelas vozes diferentes.
Não sou muito de fuxicar sobre um álbum antes de ouvi-lo. Gosto de ser pego de surpresa sempre que possível. A participação da sobrinha de Tori, Kelsey Dobyns, com uma voz lírica, segura, em “Night of Hunters”, me fez vislumbrar um duo entre Tori Amos e Loreena McKenitt. A própria música ajuda bastante nesta efêmera viagem particular.
E, claro, a filha, Natashya Hawley, com uma voz ainda com traços infantis, mas mostrando enorme potencial. Em “Job’s Coffin”, um momento praticamente solo de Tash, ela tem a oportunidade de desenvolver mais sua interpretação e desvelar o seu talento, surpreendendo com um acento mais jazzy do que a mãe. Enfim, dá um show!
Nas obras de ficção, particularmente as de heróis, quando um personagem central tem um filho é natural a imensa curiosidade em saber o que o destino reserva àquela criança. Essa curiosidade afeta não apenas os fãs, mas também os criadores. E dá-lhe dela ser raptada pra outra dimensão onde o tempo passa de forma diferente; ou o filho já crescido que viaja no tempo para encontrar os pais no nosso presente. E, ainda, a apelação de ter seu crescimento acelerado por alguma traquitana tecnológica ou magia arcana. Uma das saídas menos comprometedoras é quando o narrador resolve dar uma pequena espiada no que poderia ser o futuro.
Ok, isso tudo foi para dar uma ideia da minha curiosidade sobre o futuro de Tash (bem menor, imagino, que a curiosidade de seus pais). Se tornará ela uma cantora melhor que a mãe? Ou preferirá tocar bateria numa banda de rock? Será uma pintora bem sucedida, cantando apenas no chuveiro e em reuniões de amigos? Ou uma grande médica, a célebre Doutora Hawley, que descobrirá a cura para a obsessão de muitos por cantoras ruivas, particularmente as que tocam piano?
Passada essa primeira impressão, entram em cena as violas, baixos, flautas, violoncelos, oboés, violinos e clarinetas. Bem... Do pouco que adentrei no mundo da música erudita, deu pra perceber uma certa predileção minha pelos quartetos (obrigado, Tori), assim como prefiro os sextetos que acompanhavam Billie Holiday às big bands de Ella Fitzgerald. Os arranjos são belíssimos e revelam o acerto da proposta de construir uma ponte entre o erudito e nosso pop/rock. Tori nos leva com seu piano e os músicos que a acompanham àquelas clássicas paragens sonoras. Mas, quando começa a cantar, não resta dúvida de que estamos diante de mais uma Tori Song. Isso se torna significativamente nítido para mim logo na primeira faixa, “Shattering Sea”. Por outro lado, o desenvolvimento musical da música clássica nos presenteia com viradas inesperadas em “Edge of the Moon” e “Star Whisperer” (nas primeiras audições displicentes, pensei serem duas músicas). No fim dessa experiência musical, posso dizer que a tal ponte me pareceu bem sólida.
Por último, o conceito. Desde Scarlet’s Walk, Tori tem investido em um conceito que permeie todo o álbum para servir-lhe de inspiração. Álbuns conceituais podem ser legais, mas também possuem suas armadilhas. Se musicalmente o disco é muito bem resolvido, no texto às vezes ele fica um pouco amarrado. E, convenhamos, “I’d like to induct you into the drink of the cactus practice” não é exatamente um dos momentos mais brilhantes da ruiva. Gostaria de ver músicas mais soltas e menos referências mitológicas e medievais para aumentar o contraste do universo pop com a base erudita. Ok, também gostaria que ela se apresentasse com seu piano lá em casa.
Mas, enfim, lá está ela cantando “he’ll play a Beatle tune, me more a Bach fugue”. E ainda referências a “Lucy in the Sky with Diamonds” (se estiver equivocado, por favor, não me avisem, prefiro viver nessa ilusão) e Neil Gaiman (ou só para mim “The Chase” pareceu a cara do autor de Sandman?). Então não tenho do que reclamar.
De qualquer forma, ao sair em turnê, ou ela optaria por apresentar o disco inteiro como uma opereta, ou por misturar novas e velhas canções (como de habitual). Neste caso, algumas canções do álbum, descoladas de seu contexto, acabariam certamente de fora. Sabemos bem qual foi a opção dela.
Não posso encerrar essa atropelada resenha sem traçar um paralelo de Night of Hunters com a experiência sinfônica de Peter Gabriel. Há várias diferenças, claro. Em Scratch my back, Gabriel faz uma releitura de clássicos do rock, dando a eles um arranjo erudito. Em comum, a opção em misturar no setlist canções antigas de seus repertórios, dando a elas a mesma roupagem sonora do álbum da turnê. E ambos, também, não resistiram à tentação de, no álbum seguinte, gravar justamente essas músicas com os novos arranjos. E assim nasceram New Blood, de Gabriel, e Gold Dust, de Tori. Isso me faz crer que um artista não sai incólume dessas experiências musicais, o que faz aumentar a minha expectativa quanto aos novos trabalhos de Tori Amos. Só espero que ela, assim como o sósia de Paulo Coelho, também lance o seu DVD ao vivo.
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Flávio Andrade, carioca, conservado em barril de cerveja. Há 18 anos fã de Tori Amos à 1ª audição (Silent all these years, em fita-cassete). Formado em Publicidade, Jornalismo e Direito. Tenta manter um blog sobre cerveja e outro sobre música. Tem o mau hábito de debater sobre política e futebol nas redes sociais, além de postar tiras da Mafalda. Levaria toda a vida viajando, se tivesse tempo e dinheiro para isso. Sim, ele gosta de cantoras ruivas que tocam piano.
Quando li que Tori Amos havia assinado com a Deutsche Grammophon, levei um susto. E fiquei curioso ao tomar conhecimento do projeto de usar composições clássicas. Apesar de reconhecer a música de Bach nos primeiros acordes de “Edge of the Moon”, e relembrar com satisfação de “Pictures at na Exhibition” via Emerson, Lake & Palmer em “The Chase”, música erudita está há léguas de ser minha especialidade. Então, não tenho como opinar a respeito de como a compositora revisitou esses velhos clássicos. Portanto, encaro Night of Hunters humildemente como mais um disco da Tori. De qualquer forma, não deixa de ser charmoso ver aquele selo classudo da gravadora alemã na contracapa do álbum.
Seria natural que a primeira coisa a chamar a atenção fosse a estrutura clássica e a orquestração das músicas, certo? Mas nada é óbvio quando se trata de Tori Amos. O que acabou chamando a minha atenção na primeira audição foram aquelas vozes diferentes.
Não sou muito de fuxicar sobre um álbum antes de ouvi-lo. Gosto de ser pego de surpresa sempre que possível. A participação da sobrinha de Tori, Kelsey Dobyns, com uma voz lírica, segura, em “Night of Hunters”, me fez vislumbrar um duo entre Tori Amos e Loreena McKenitt. A própria música ajuda bastante nesta efêmera viagem particular.
E, claro, a filha, Natashya Hawley, com uma voz ainda com traços infantis, mas mostrando enorme potencial. Em “Job’s Coffin”, um momento praticamente solo de Tash, ela tem a oportunidade de desenvolver mais sua interpretação e desvelar o seu talento, surpreendendo com um acento mais jazzy do que a mãe. Enfim, dá um show!
Nas obras de ficção, particularmente as de heróis, quando um personagem central tem um filho é natural a imensa curiosidade em saber o que o destino reserva àquela criança. Essa curiosidade afeta não apenas os fãs, mas também os criadores. E dá-lhe dela ser raptada pra outra dimensão onde o tempo passa de forma diferente; ou o filho já crescido que viaja no tempo para encontrar os pais no nosso presente. E, ainda, a apelação de ter seu crescimento acelerado por alguma traquitana tecnológica ou magia arcana. Uma das saídas menos comprometedoras é quando o narrador resolve dar uma pequena espiada no que poderia ser o futuro.
Ok, isso tudo foi para dar uma ideia da minha curiosidade sobre o futuro de Tash (bem menor, imagino, que a curiosidade de seus pais). Se tornará ela uma cantora melhor que a mãe? Ou preferirá tocar bateria numa banda de rock? Será uma pintora bem sucedida, cantando apenas no chuveiro e em reuniões de amigos? Ou uma grande médica, a célebre Doutora Hawley, que descobrirá a cura para a obsessão de muitos por cantoras ruivas, particularmente as que tocam piano?
Passada essa primeira impressão, entram em cena as violas, baixos, flautas, violoncelos, oboés, violinos e clarinetas. Bem... Do pouco que adentrei no mundo da música erudita, deu pra perceber uma certa predileção minha pelos quartetos (obrigado, Tori), assim como prefiro os sextetos que acompanhavam Billie Holiday às big bands de Ella Fitzgerald. Os arranjos são belíssimos e revelam o acerto da proposta de construir uma ponte entre o erudito e nosso pop/rock. Tori nos leva com seu piano e os músicos que a acompanham àquelas clássicas paragens sonoras. Mas, quando começa a cantar, não resta dúvida de que estamos diante de mais uma Tori Song. Isso se torna significativamente nítido para mim logo na primeira faixa, “Shattering Sea”. Por outro lado, o desenvolvimento musical da música clássica nos presenteia com viradas inesperadas em “Edge of the Moon” e “Star Whisperer” (nas primeiras audições displicentes, pensei serem duas músicas). No fim dessa experiência musical, posso dizer que a tal ponte me pareceu bem sólida.
Por último, o conceito. Desde Scarlet’s Walk, Tori tem investido em um conceito que permeie todo o álbum para servir-lhe de inspiração. Álbuns conceituais podem ser legais, mas também possuem suas armadilhas. Se musicalmente o disco é muito bem resolvido, no texto às vezes ele fica um pouco amarrado. E, convenhamos, “I’d like to induct you into the drink of the cactus practice” não é exatamente um dos momentos mais brilhantes da ruiva. Gostaria de ver músicas mais soltas e menos referências mitológicas e medievais para aumentar o contraste do universo pop com a base erudita. Ok, também gostaria que ela se apresentasse com seu piano lá em casa.
Mas, enfim, lá está ela cantando “he’ll play a Beatle tune, me more a Bach fugue”. E ainda referências a “Lucy in the Sky with Diamonds” (se estiver equivocado, por favor, não me avisem, prefiro viver nessa ilusão) e Neil Gaiman (ou só para mim “The Chase” pareceu a cara do autor de Sandman?). Então não tenho do que reclamar.
De qualquer forma, ao sair em turnê, ou ela optaria por apresentar o disco inteiro como uma opereta, ou por misturar novas e velhas canções (como de habitual). Neste caso, algumas canções do álbum, descoladas de seu contexto, acabariam certamente de fora. Sabemos bem qual foi a opção dela.
Não posso encerrar essa atropelada resenha sem traçar um paralelo de Night of Hunters com a experiência sinfônica de Peter Gabriel. Há várias diferenças, claro. Em Scratch my back, Gabriel faz uma releitura de clássicos do rock, dando a eles um arranjo erudito. Em comum, a opção em misturar no setlist canções antigas de seus repertórios, dando a elas a mesma roupagem sonora do álbum da turnê. E ambos, também, não resistiram à tentação de, no álbum seguinte, gravar justamente essas músicas com os novos arranjos. E assim nasceram New Blood, de Gabriel, e Gold Dust, de Tori. Isso me faz crer que um artista não sai incólume dessas experiências musicais, o que faz aumentar a minha expectativa quanto aos novos trabalhos de Tori Amos. Só espero que ela, assim como o sósia de Paulo Coelho, também lance o seu DVD ao vivo.
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Flávio Andrade, carioca, conservado em barril de cerveja. Há 18 anos fã de Tori Amos à 1ª audição (Silent all these years, em fita-cassete). Formado em Publicidade, Jornalismo e Direito. Tenta manter um blog sobre cerveja e outro sobre música. Tem o mau hábito de debater sobre política e futebol nas redes sociais, além de postar tiras da Mafalda. Levaria toda a vida viajando, se tivesse tempo e dinheiro para isso. Sim, ele gosta de cantoras ruivas que tocam piano.
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
Flavors: The Beekeeper
The Beekeeper foi, digamos assim, o primeiro álbum polêmico de Tori. Sua duração e a irregularidade das faixas fizeram com que alguns fãs repudiassem boa parte do disco; outros, no entanto, gostaram bastante do resultado, criando portanto uma relação de afeto sincero com as músicas. E um deles foi Lucas Tolotti (facebook), que acabou dando sua contribuição para a série Flavors tratando exatamente dele. Seu texto é dotado de suavidade e flui como um passeio pela praia; sua suavidade, porém, mascara certas dificuldades que todos enfrentamos na vida, e o passeio, mesmo sendo regozijante, é recheado de pensamentos e reflexões, uma certa introspecção. No fim das contas, Lucas representou muito bem o que é The Beekeeper.
Enjoy it!
"She is risen
She is risen
Boys
I said she is risen"
Em algum lugar de 2007, eu, com apenas 15 anos, escutei Tori Amos pela primeira vez. E comecei pelo último álbum dela na época, “The Beekeeper”. Não vou entrar, de maneira alguma, no mérito da qualidade do álbum, por muitos questionada. O fato é que este disco pode ser usado como uma metáfora para a ruptura de paradigmas e a construção de outros, que foram acontecendo ao longo desses cinco anos que se passaram.
Com 15 anos, eu era apenas um adolescente que não sabia quase nada da vida e vivia de forma pacata em uma cidade do interior, sem contato com muitas pessoas e limitado a reproduzir com culpa consciente ensinamentos, crenças e tradições familiares.
Foi então que recebi uma espécie de chamado. E este veio com a música. Precisamente, com a primeira música de Tori Amos que ouvi: “Parasol”, faixa que abre “The Beekeeper”. Já estava hipnotizado com as primeiras notas... E então, quando a escutei cantar “when I come to terms, to terms with this”, o primeiro e primário pensamento que me veio a cabeça foi: “que voz!”. Sim, eu havia sido domado.
Com a distância temporal que me separa do meu eu adolescente, e de certa forma é como se eu estivesse dialogando com ele agora, eu percebo como essa música se encaixa na minha vida de diferentes formas. Principalmente, neste exato momento que escrevo este texto. “I stare at the wall knowing on the other side, the storm that waits for me”. Sim, minha vida está prestes a mudar, pra pior ou pra melhor, e eu sei disso. Sei da tempestade que me aguarda, e possuo aquele impulso de querer me manter seguro na minha moldura, mesmo sabendo que, não importa o que eu faça, meu mundo irá mudar para mim. Engraçado como a primeira música de Tori que ouvi é a que mais me define nesse momento.
Ainda conversando com o Lucas de cinco anos atrás, percebo como temas das músicas deste álbum se mantiveram vivos na minha história. Eu, uma pessoa insegura por natureza, fui levado a acreditar que “the sexiest thing is trust”. Nos meus momentos de decepção amorosa, me questionava se alguém poderia me dizer quem é esse terrorista. Mais uma vez percebo o tanto que esse álbum é presente. No término do meu último relacionamento, foi inevitável não lembrar das seguintes linhas:
“So how, how will I go
Back on, back on the shelf
With a smile, with a smile
To the customer and say
‘On sale by the owner’?”
Entretanto, minha história com o The Beekeeper vai além de trechos de músicas usados em minha experiência pessoal. Ele, como um todo, pode ser encarado como a representação do que é a maturidade, do que é encarar a vida pelo seu prisma de cores em diferentes matizes, de se pegar perplexo com os paradoxos e incoerências que encontramos ao longo do caminho. Ao mesmo tempo que canta sobre sua filha, a ‘revolução’ de se tornar uma mãe, viagens, etc., há, durante todo o álbum, a presença da insegurança, confronto, religião, decepção, perda, morte. Temas estes presentes em trabalhos anteriores, mas que são vistos por uma ótica diferente, por uma nova Tori.
Nesse álbum há uma Amos madura, mãe, se referindo à natureza, e encaro essa natureza de duas formas. A física, representada pelas abelhas, borboletas e jardins, e também a psicológica, pessoal, dela, minha, de você que lê esse texto, enfim, de todos nós. Por exemplo, The Beekeeper e Toast lidam, respectivamente, com o medo da perda e com a conformação da perda. Original Sinsuality, com sua letra repleta de gnosticismo, me fez ampliar a percepção do que é religião, assim como Marys of the Sea. Apenas exemplos de como a arte abre nossa cabeça.
E com certeza este álbum se mostrará de uma forma diferente pra mim daqui a 5 anos, e pelos outros que se seguirão, comprovando, mais uma vez, a relação entre maturidade e seu significado que o disco possui. Aliás, qualidade essa que Tori possui. Seus álbuns se comunicam conosco de maneira diferente à medida que o tempo vai passando. E isso é mágico.
Conforme disse no começo do texto, recebi um chamado da música. Um chamado de Tori. E, encerrando com Parasol, mais uma vez, “I haven’t moved since the call came”. É hipnótico.
---
Lucas Tolotti: 20 anos, do interior de São Paulo. Estudante de Direito frustrado. Futuro vestibulando de publicidade. Respira música. Aquariano com ascendente em peixes, ou seja, muito muito sensível. Acredita na ingenuidade das pessoas e possui ideais românticos. Estupidez? Talvez.
Enjoy it!
"She is risen
She is risen
Boys
I said she is risen"
Em algum lugar de 2007, eu, com apenas 15 anos, escutei Tori Amos pela primeira vez. E comecei pelo último álbum dela na época, “The Beekeeper”. Não vou entrar, de maneira alguma, no mérito da qualidade do álbum, por muitos questionada. O fato é que este disco pode ser usado como uma metáfora para a ruptura de paradigmas e a construção de outros, que foram acontecendo ao longo desses cinco anos que se passaram.
Com 15 anos, eu era apenas um adolescente que não sabia quase nada da vida e vivia de forma pacata em uma cidade do interior, sem contato com muitas pessoas e limitado a reproduzir com culpa consciente ensinamentos, crenças e tradições familiares.
Foi então que recebi uma espécie de chamado. E este veio com a música. Precisamente, com a primeira música de Tori Amos que ouvi: “Parasol”, faixa que abre “The Beekeeper”. Já estava hipnotizado com as primeiras notas... E então, quando a escutei cantar “when I come to terms, to terms with this”, o primeiro e primário pensamento que me veio a cabeça foi: “que voz!”. Sim, eu havia sido domado.
Com a distância temporal que me separa do meu eu adolescente, e de certa forma é como se eu estivesse dialogando com ele agora, eu percebo como essa música se encaixa na minha vida de diferentes formas. Principalmente, neste exato momento que escrevo este texto. “I stare at the wall knowing on the other side, the storm that waits for me”. Sim, minha vida está prestes a mudar, pra pior ou pra melhor, e eu sei disso. Sei da tempestade que me aguarda, e possuo aquele impulso de querer me manter seguro na minha moldura, mesmo sabendo que, não importa o que eu faça, meu mundo irá mudar para mim. Engraçado como a primeira música de Tori que ouvi é a que mais me define nesse momento.
Ainda conversando com o Lucas de cinco anos atrás, percebo como temas das músicas deste álbum se mantiveram vivos na minha história. Eu, uma pessoa insegura por natureza, fui levado a acreditar que “the sexiest thing is trust”. Nos meus momentos de decepção amorosa, me questionava se alguém poderia me dizer quem é esse terrorista. Mais uma vez percebo o tanto que esse álbum é presente. No término do meu último relacionamento, foi inevitável não lembrar das seguintes linhas:
“So how, how will I go
Back on, back on the shelf
With a smile, with a smile
To the customer and say
‘On sale by the owner’?”
Entretanto, minha história com o The Beekeeper vai além de trechos de músicas usados em minha experiência pessoal. Ele, como um todo, pode ser encarado como a representação do que é a maturidade, do que é encarar a vida pelo seu prisma de cores em diferentes matizes, de se pegar perplexo com os paradoxos e incoerências que encontramos ao longo do caminho. Ao mesmo tempo que canta sobre sua filha, a ‘revolução’ de se tornar uma mãe, viagens, etc., há, durante todo o álbum, a presença da insegurança, confronto, religião, decepção, perda, morte. Temas estes presentes em trabalhos anteriores, mas que são vistos por uma ótica diferente, por uma nova Tori.
Nesse álbum há uma Amos madura, mãe, se referindo à natureza, e encaro essa natureza de duas formas. A física, representada pelas abelhas, borboletas e jardins, e também a psicológica, pessoal, dela, minha, de você que lê esse texto, enfim, de todos nós. Por exemplo, The Beekeeper e Toast lidam, respectivamente, com o medo da perda e com a conformação da perda. Original Sinsuality, com sua letra repleta de gnosticismo, me fez ampliar a percepção do que é religião, assim como Marys of the Sea. Apenas exemplos de como a arte abre nossa cabeça.
E com certeza este álbum se mostrará de uma forma diferente pra mim daqui a 5 anos, e pelos outros que se seguirão, comprovando, mais uma vez, a relação entre maturidade e seu significado que o disco possui. Aliás, qualidade essa que Tori possui. Seus álbuns se comunicam conosco de maneira diferente à medida que o tempo vai passando. E isso é mágico.
Conforme disse no começo do texto, recebi um chamado da música. Um chamado de Tori. E, encerrando com Parasol, mais uma vez, “I haven’t moved since the call came”. É hipnótico.
---
Lucas Tolotti: 20 anos, do interior de São Paulo. Estudante de Direito frustrado. Futuro vestibulando de publicidade. Respira música. Aquariano com ascendente em peixes, ou seja, muito muito sensível. Acredita na ingenuidade das pessoas e possui ideais românticos. Estupidez? Talvez.
sábado, 3 de novembro de 2012
Flavors: Strange Little Girls
A visão feminina de Tori sobre canções masculinas deu origem ao Strange Little Girls. Não chega a ser um álbum feminista - Tori apenas mudou o foco de algumas letras, dando um novo sentido e nos fazendo refletir sobre outras perspectivas das canções. A dualidade do álbum se faz presente neste bonito, porém tenso, texto do Hernando, apresentando uma história de uma estranha garotinha sob a visão de um homem.
- Mariela Simão (que escreveu sobre o Pele)
Strange Little Girl
Foi um abuso.
E outro.
E uma sequência de abusos que me tomaram anos de alegria e me deram séculos de uma insatisfação sem nome. Me sentia uma flor pisoteada toda vez que começava, e era como se a cada investida, cada movimento doente meu corpo friccionasse até quase explodir - e hoje não tenho vontade de sentir. Nem prazer, nem desgosto, nem lamento. Só às vezes que sinto raiva. Uma raiva gelada, daquela que congela a espinha quando mira direto em olhos desatentos.
Mas não foi nada pessoal, você parece ser uma pessoa boa, não merece minha raiva.
Eu sofri abuso sexual dos meus oito até os 11 anos. Meu pai, ele me tocava. Nas primeiras vezes, eu não o entendia muito bem. Até hoje, eu não o entendo bem - mas ele me feria. Ele me tocava com tanto carinho, mas eu não queria aquilo, era excruciante só imaginar que ele viria e começaria a me “bulinar”. “Pais não podem, não devem tocar suas filhas assim”, era sempre o que vinha na cabeça a cada investida daquele satã. Não tive nem chance de conhecer Deus direito, e estava ali, dançando com um demônio.
A voz dele me doía, ouvi-lo me chamar de “filhinha”, nossa, “filhinha do papai”, me cortava como uma agulha atravessando meu coração e varando minhas costas. Era uma dor pontiaguda, furava minha alma e deixava ela assim, vazia. Ficava a ponto de enlouquecer quando ele dizia, “te amo, filhinha” - AQUELE IDIOTA NÃO AMAVA NINGUÉM, COMO ELE SE DAVA AO DIREITO DE DIZER QUE ME AMAVA?! -
Pois NÃO, não me amava, ele me ensinou o que é o desamor. E isso é pior até do que sentir ódio por alguém.
Eu não o amo. E não me amo, também.
Tudo acabou quando finalmente minha mãe chegou em casa mais cedo e viu o que o marido dela fazia com sua filhinha. Ela partiu pra cima dele e começaram uma briga corporal - depois disso, eu vi seu corpo voando para a sala. Sim, meu pai matou minha mãe, traumatismo craniano, sangue pela casa, o chão da sala vermelho escuro. Vizinhos decidiram chamar a polícia depois de ouvir meu choro e os barulhos da briga, e foi aí que ele foi preso, pelo homicídio. Minha avó materna, outra coitada, ficou com minha guarda, mas com 18 anos eu saí da cidadezinha onde ela morava e decidi tentar a vida fazendo faculdade numa cidade maior - pensava que aqui as pessoas poderiam me dar algo que desde meus oito anos eu nunca mais tive: paz.
Uma paz fria, distanciada, era o que eu mais queria.
Mesmo mantendo a distância, fui obrigada a me envolver com pessoas na faculdade, e acabei conhecendo algumas poucas. Uma delas foi a Paula, adorava o jeito calado dela. “Enjoy the silence”, ela costumava dizer. Muitas vezes só sentávamos e ficávamos ouvindo música no mp3, ela gostava muito de Velvet Underground. Paula não percebia, mas toda vez que chegava no verso, “it’s the beginning of the new age”, seus olhos faiscavam! Sim, o que mais me chamava atenção nela era o quanto seu silêncio escondia, e o quanto seus olhos revelavam... Eu tinha vontade de arrancar aqueles olhos para mim, e trocá-los pelos meus - mas isso não resolveria nada, então só observava.
Paula era filha de Judith, uma mulher que a teve muito cedo, aos 17 anos. Quando as conheci, dona Judith já havia se casado com outro homem, não o pai de Paula, mas estava enfrentando um divórcio - eles haviam perdido o filho caçula da família, e ela entrou em depressão, num fosso fundo o bastante para não ouvir nem os chamados da filha - tudo bem que Paula sempre falava baixo, mas ela não respondia nem a sua própria cria?! Imagine o marido... Ele não aguentou aquela situação e voltou pra cidade onde seus pais moravam. Dona Judith pareceu não ter se importado tanto, o amor já a desapontara o suficiente.
Eu e Paula ficamos mais próximas conversando sobre nossos problemas, mas não era nada verborrágico - quando uma chorava, a outra segurava sua mão e só. Eu às vezes punha Heart of Gold, versão do Johnny Cash, para tocar, e assim éramos duas irmãs, duas irmãs sob o mesmo cobertor inútil pro frio. E a gente sorria com certo desdém ao ouvir Cash cantando, “And I’m gettin’ old” - éramos duas velhas cansadas, tínhamos pra onde envelhecer?
Daí, numa segunda qualquer, quando acordava para ir a faculdade, recebo uma ligação que me fez voltar para a cama, mas sem um pingo de sono: Dona Judith havia se suicidado. Paula pedia por mim, mas demorei a sair: eu lembrei de minha mãe, do corpo gelado dela, das flores mais feias desse mundo sobre o caixão, e toda aquela desgraça fez com que vomitasse qualquer coisa que não tinha no estômago - sentia um puxão eterno em minha barriga, mas precisava ir ao encontro de Paula. E ela estava diferente quando a encontrei. Eu não sei te dizer se era pra melhor ou pra pior, ela estava apenas diferente. Peguei as coisas dela em casa e fomos juntas ao velório de sua mãe - preferi não ficar perto do caixão (“outra vez não”, eu pensava), mas ela ficou. E chorou. Chorou beijando a testa da mãe, chorou dizendo o nome de seu irmão, chorou debruçada sobre o que restara de sua mãe, entre velas e as mesmas flores feias. Chorou até o último momento, quando já não se via o caixão dentro da cova.
Fomos pra casa, e ela me disse: “eu sempre odiei as segundas-feiras, sempre”. Dormimos juntas, e de manhã, fiz café preto pra ver se acordávamos de mais um pesadelo ruim. Outro pesadelo ruim. E o dia foi chuvoso. A semana, também.
“Não parece que a chuva tá batendo palmas, quando ela cai sobre a janela?” - “Batendo palmas pra nossa tragédia grega, só se for”. O primeiro sorriso, em dias.
Passaram alguns meses e Paula foi desabrochando, a cada dia. “Sorte minha ela não me esquecer”, pensava eu, mas de fato, ela começou a ir em festas e me arrastava pra todas elas. Foi numa dessas festas que conheceu o Jonas, e ele foi muito cortês com ela, desde o começo. Levava em casa, trazia flores, bombom e todas essas coisas: acabou tirando a virgindade dela. Paula começou a falar de coisas que me incomodavam, mas vê-la bem me deixava feliz... E fomos assim, eu continuava sendo a irmã dela, e ele meu cunhado. Sentia algo de novo surgindo, algo que depois de tanto tempo me soava surpreendente. “É uma família”, Paula dizia.
Depois de dois anos juntos, eles decidiram se casar. Jonas havia se acomodado um pouco, e agora estava sempre se excedendo em seus ciúmes. Mesmo nessas condições, ela me garantiu que estava tranquila com os rompantes de raiva dele, que ela já havia se acostumado. Não gostava disso, Paula sabia, mas àquela altura não poderia impedir nada. Se casaram. Voltaram da lua de mel. E foram felizes para sempre.
Até a primeira agressão.
E a segunda.
E uma sequência de agressões, primeiro verbais, depois físicas, todas motivadas por um ciúme e uma obsessão que literalmente a prendiam em casa. Paula ficava mais e mais frágil e a cada dia que se passava, via a flor desabrochada apodrecer. Sugeri então que fugíssemos juntas, que nós éramos irmãs e eu não podia deixá-la nas mãos daquele canalha, mas ela relutava em sair de casa, amava Jonas e estava esperando o primeiro filho deles, “não, eu vou ficar aqui!”.
Fomos perdendo contato, mas minha angústia não cessava.
Até o dia em que Paula finalmente acordou para si, ainda grávida e agora temendo pelo filho, e disse a Jonas que iria embora. Segundo os vizinhos, ele a acusou aos gritos de estar com outro, e depois de espancá-la tortuosamente, saiu de casa. Ela foi socorrida.
Mas morreu.
E é por isso que eu estou aqui.
Fui atrás de Jonas com uma arma e disparei o cartucho inteiro contra ele. Eu lembro com orgulho das palavras que usei:
“Você acha que isso foi ser um homem de verdade? Você acha que tratar sua mulher como um objeto que lhe pertencia foi agir como um homem de verdade, seu demônio?! Pois bem, se isso é ser um homem de verdade pra você, EU vou ser uma mulher de verdade agora!”
E o sangue jorrou. As gotas caíam, como chuva, e eu gargalhava de como aquela cena era vermelha, uma volúpia! Foi libertador lembrar dos olhos de Paula, pois ali eu sabia que eles faiscavam como nunca. Que Deus a tenha.
- Bem... Sua história... Qual é seu nome completo? O escrivão precisa registrá-lo na confissão.
Minha mãe às vezes dizia a meu pai: “Nossa garotinha anda muito calada, estranha, João” - Garotinha Estranha. Pode registrar.
nota: naturalmente, esse texto não tem por objetivo instigar a violência, mas retratar realidades cruéis que ainda acontecem dia após dia, relacionadas de alguma forma com as canções do SLG. Se você se identifica com alguma destas situações de abuso, a solução é procurar ajuda, seja em amigos, seja na justiça. E criar. Como Tori sempre fez, criar a partir da destruição e desordem.
Hernando Siqueira Neto, 25 anos. Uma pessoa que aproveita bastante seu ócio criativo e sua suposta solidão. E que vive pensando em Marianne.
- Mariela Simão (que escreveu sobre o Pele)
Strange Little Girl
Foi um abuso.
E outro.
E uma sequência de abusos que me tomaram anos de alegria e me deram séculos de uma insatisfação sem nome. Me sentia uma flor pisoteada toda vez que começava, e era como se a cada investida, cada movimento doente meu corpo friccionasse até quase explodir - e hoje não tenho vontade de sentir. Nem prazer, nem desgosto, nem lamento. Só às vezes que sinto raiva. Uma raiva gelada, daquela que congela a espinha quando mira direto em olhos desatentos.
Mas não foi nada pessoal, você parece ser uma pessoa boa, não merece minha raiva.
Eu sofri abuso sexual dos meus oito até os 11 anos. Meu pai, ele me tocava. Nas primeiras vezes, eu não o entendia muito bem. Até hoje, eu não o entendo bem - mas ele me feria. Ele me tocava com tanto carinho, mas eu não queria aquilo, era excruciante só imaginar que ele viria e começaria a me “bulinar”. “Pais não podem, não devem tocar suas filhas assim”, era sempre o que vinha na cabeça a cada investida daquele satã. Não tive nem chance de conhecer Deus direito, e estava ali, dançando com um demônio.
A voz dele me doía, ouvi-lo me chamar de “filhinha”, nossa, “filhinha do papai”, me cortava como uma agulha atravessando meu coração e varando minhas costas. Era uma dor pontiaguda, furava minha alma e deixava ela assim, vazia. Ficava a ponto de enlouquecer quando ele dizia, “te amo, filhinha” - AQUELE IDIOTA NÃO AMAVA NINGUÉM, COMO ELE SE DAVA AO DIREITO DE DIZER QUE ME AMAVA?! -
Pois NÃO, não me amava, ele me ensinou o que é o desamor. E isso é pior até do que sentir ódio por alguém.
Eu não o amo. E não me amo, também.
Tudo acabou quando finalmente minha mãe chegou em casa mais cedo e viu o que o marido dela fazia com sua filhinha. Ela partiu pra cima dele e começaram uma briga corporal - depois disso, eu vi seu corpo voando para a sala. Sim, meu pai matou minha mãe, traumatismo craniano, sangue pela casa, o chão da sala vermelho escuro. Vizinhos decidiram chamar a polícia depois de ouvir meu choro e os barulhos da briga, e foi aí que ele foi preso, pelo homicídio. Minha avó materna, outra coitada, ficou com minha guarda, mas com 18 anos eu saí da cidadezinha onde ela morava e decidi tentar a vida fazendo faculdade numa cidade maior - pensava que aqui as pessoas poderiam me dar algo que desde meus oito anos eu nunca mais tive: paz.
Uma paz fria, distanciada, era o que eu mais queria.
Mesmo mantendo a distância, fui obrigada a me envolver com pessoas na faculdade, e acabei conhecendo algumas poucas. Uma delas foi a Paula, adorava o jeito calado dela. “Enjoy the silence”, ela costumava dizer. Muitas vezes só sentávamos e ficávamos ouvindo música no mp3, ela gostava muito de Velvet Underground. Paula não percebia, mas toda vez que chegava no verso, “it’s the beginning of the new age”, seus olhos faiscavam! Sim, o que mais me chamava atenção nela era o quanto seu silêncio escondia, e o quanto seus olhos revelavam... Eu tinha vontade de arrancar aqueles olhos para mim, e trocá-los pelos meus - mas isso não resolveria nada, então só observava.
Paula era filha de Judith, uma mulher que a teve muito cedo, aos 17 anos. Quando as conheci, dona Judith já havia se casado com outro homem, não o pai de Paula, mas estava enfrentando um divórcio - eles haviam perdido o filho caçula da família, e ela entrou em depressão, num fosso fundo o bastante para não ouvir nem os chamados da filha - tudo bem que Paula sempre falava baixo, mas ela não respondia nem a sua própria cria?! Imagine o marido... Ele não aguentou aquela situação e voltou pra cidade onde seus pais moravam. Dona Judith pareceu não ter se importado tanto, o amor já a desapontara o suficiente.
Eu e Paula ficamos mais próximas conversando sobre nossos problemas, mas não era nada verborrágico - quando uma chorava, a outra segurava sua mão e só. Eu às vezes punha Heart of Gold, versão do Johnny Cash, para tocar, e assim éramos duas irmãs, duas irmãs sob o mesmo cobertor inútil pro frio. E a gente sorria com certo desdém ao ouvir Cash cantando, “And I’m gettin’ old” - éramos duas velhas cansadas, tínhamos pra onde envelhecer?
Daí, numa segunda qualquer, quando acordava para ir a faculdade, recebo uma ligação que me fez voltar para a cama, mas sem um pingo de sono: Dona Judith havia se suicidado. Paula pedia por mim, mas demorei a sair: eu lembrei de minha mãe, do corpo gelado dela, das flores mais feias desse mundo sobre o caixão, e toda aquela desgraça fez com que vomitasse qualquer coisa que não tinha no estômago - sentia um puxão eterno em minha barriga, mas precisava ir ao encontro de Paula. E ela estava diferente quando a encontrei. Eu não sei te dizer se era pra melhor ou pra pior, ela estava apenas diferente. Peguei as coisas dela em casa e fomos juntas ao velório de sua mãe - preferi não ficar perto do caixão (“outra vez não”, eu pensava), mas ela ficou. E chorou. Chorou beijando a testa da mãe, chorou dizendo o nome de seu irmão, chorou debruçada sobre o que restara de sua mãe, entre velas e as mesmas flores feias. Chorou até o último momento, quando já não se via o caixão dentro da cova.
Fomos pra casa, e ela me disse: “eu sempre odiei as segundas-feiras, sempre”. Dormimos juntas, e de manhã, fiz café preto pra ver se acordávamos de mais um pesadelo ruim. Outro pesadelo ruim. E o dia foi chuvoso. A semana, também.
“Não parece que a chuva tá batendo palmas, quando ela cai sobre a janela?” - “Batendo palmas pra nossa tragédia grega, só se for”. O primeiro sorriso, em dias.
Passaram alguns meses e Paula foi desabrochando, a cada dia. “Sorte minha ela não me esquecer”, pensava eu, mas de fato, ela começou a ir em festas e me arrastava pra todas elas. Foi numa dessas festas que conheceu o Jonas, e ele foi muito cortês com ela, desde o começo. Levava em casa, trazia flores, bombom e todas essas coisas: acabou tirando a virgindade dela. Paula começou a falar de coisas que me incomodavam, mas vê-la bem me deixava feliz... E fomos assim, eu continuava sendo a irmã dela, e ele meu cunhado. Sentia algo de novo surgindo, algo que depois de tanto tempo me soava surpreendente. “É uma família”, Paula dizia.
Depois de dois anos juntos, eles decidiram se casar. Jonas havia se acomodado um pouco, e agora estava sempre se excedendo em seus ciúmes. Mesmo nessas condições, ela me garantiu que estava tranquila com os rompantes de raiva dele, que ela já havia se acostumado. Não gostava disso, Paula sabia, mas àquela altura não poderia impedir nada. Se casaram. Voltaram da lua de mel. E foram felizes para sempre.
Até a primeira agressão.
E a segunda.
E uma sequência de agressões, primeiro verbais, depois físicas, todas motivadas por um ciúme e uma obsessão que literalmente a prendiam em casa. Paula ficava mais e mais frágil e a cada dia que se passava, via a flor desabrochada apodrecer. Sugeri então que fugíssemos juntas, que nós éramos irmãs e eu não podia deixá-la nas mãos daquele canalha, mas ela relutava em sair de casa, amava Jonas e estava esperando o primeiro filho deles, “não, eu vou ficar aqui!”.
Fomos perdendo contato, mas minha angústia não cessava.
Até o dia em que Paula finalmente acordou para si, ainda grávida e agora temendo pelo filho, e disse a Jonas que iria embora. Segundo os vizinhos, ele a acusou aos gritos de estar com outro, e depois de espancá-la tortuosamente, saiu de casa. Ela foi socorrida.
Mas morreu.
E é por isso que eu estou aqui.
Fui atrás de Jonas com uma arma e disparei o cartucho inteiro contra ele. Eu lembro com orgulho das palavras que usei:
“Você acha que isso foi ser um homem de verdade? Você acha que tratar sua mulher como um objeto que lhe pertencia foi agir como um homem de verdade, seu demônio?! Pois bem, se isso é ser um homem de verdade pra você, EU vou ser uma mulher de verdade agora!”
E o sangue jorrou. As gotas caíam, como chuva, e eu gargalhava de como aquela cena era vermelha, uma volúpia! Foi libertador lembrar dos olhos de Paula, pois ali eu sabia que eles faiscavam como nunca. Que Deus a tenha.
- Bem... Sua história... Qual é seu nome completo? O escrivão precisa registrá-lo na confissão.
Minha mãe às vezes dizia a meu pai: “Nossa garotinha anda muito calada, estranha, João” - Garotinha Estranha. Pode registrar.
nota: naturalmente, esse texto não tem por objetivo instigar a violência, mas retratar realidades cruéis que ainda acontecem dia após dia, relacionadas de alguma forma com as canções do SLG. Se você se identifica com alguma destas situações de abuso, a solução é procurar ajuda, seja em amigos, seja na justiça. E criar. Como Tori sempre fez, criar a partir da destruição e desordem.
Hernando Siqueira Neto, 25 anos. Uma pessoa que aproveita bastante seu ócio criativo e sua suposta solidão. E que vive pensando em Marianne.
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quinta-feira, 1 de novembro de 2012
Flavors: Under The Pink
O Under The Pink é um álbum feminino. Mesmo que falar isso soe como se o enquadrasse num estereótipo, é uma obra que traça seu caminho por dentro, invocando emoções diversas: delicadas, brutais, rancorosas ou de compaixão, mas que mais se escondem do que se mostram. E depois de ler o texto de Samanta Alcardo para a série Flavors, sinto que essas discretas emoções estão lá, impressas nas palavras centradas e doces que denotam sua relação de amor com o disco. É como se ali estivesse a serenidade necessária para enfrentar uma tempestade; uma serenidade que é ameaçada a cada cinco segundos, mas que se mostra fundamental para encontrar um porto seguro. E as companheiras de viagem dela, assim como de outras muitas pessoas, foram exatamente as garotas que vivem debaixo do rosa. Logo abaixo do rosa.
Era 2007, ano mais reviravolta da minha vida e ano em que comecei a fazer terapia. Ano em que fui diagnosticada com depressão crônica pela primeira vez. Ano em que fui medicada.
Um ano tempestivo, difícil, sofrido, chorado, mas ainda assim um bom ano.
A sessão começava às 18h30, às terças-feiras. Eu saía do trabalho às 18h e subia a Av. Angélica a pé até o consultório. Foi o ano em que comecei a ouvir o Under the Pink, justamente nesse trajeto até o consultório.
Preciso deixar claro que, nessa época, esse disco teve um papel que nenhum outro disco teve pra mim. Ele me pegava no colo. Pra mim, a maior beleza do UTP são as melodias e isso eu acho até hoje. Nenhum outro disco da Tori tem melodias tão apaziguadoras, tão confortantes, tão pacificadoras para mim. Em 2007, eu não me importava muito com as letras do UTP, digo, no sentido de “essa música é sobre isso”. Mas frases soltas tinham sua importância e davam conselhos, como se fossem irmãzinhas que eu tinha naquele momento em que me sentia tão sem chão, tão no escuro. Mas a maior característica dessas irmãzinhas eram as melodias.
Os primeiros acordes de Pretty Good Year já me faziam desmanchar e cair em prantos em plena Av. Angélica. Era sempre na esquina logo depois do prédio da Quadrant, empresa em que eu trabalhava. Porque naquela época eu segurava o choro por todo o horário de trabalho. Então quando eu saía era a hora de soltar o ar, de admitir que nada estava bem e de agir como tal. Tears on the sleeve of a man Don’t wanna be a boy today... e eu já nem enxergava a calçada. Finalmente Tori tinha chegado no meu dia e pra ela eu não precisava fingir nada, ela sabia onde eu estava.
Ela me conhecia.
Esse início de terapia foi um caos. Nada é pior do que verbalizar tudo que se sente, principalmente quando você nunca fez isso antes diante de um profissional. É como admitir que tudo está acontecendo. E eu fugi, eu juro que tentei. Mas uma hora não deu mais. E quando eu decidi ir para o consultório uma vez por semana, descobri que toda aquela tristeza e peso que tinham me acompanhado até então não precisavam estar ali. Não faziam parte de mim, que coisa. Como? Existe uma versão da Samanta sem tudo isso? Sem a inadequação, sem a falta de tato e habilidade pra lidar com as pessoas? Sem a indisposição diária para lidar com o mundo? Hold onto nothing As fast as you can...
Esse disco me embalava e quando eu ouvia o piano delicado – embora meio sufocado – de Bells for Her, de alguma maneira me sentia num lugar seguro.
Past the Mission continuava a me nutrir de carinho, a afagar meus cabelos. Sempre achei essa música a primeira mais “faceira” do disco, era um momento em que eu conseguia respirar. E sempre ouvindo essa música, não sei muito por que eu me lembrava da foto da Tori na capa de trás do disco. Sempre achei aquela foto tão linda, ela ali, de frente, sem pose nem muita expressão facial combinada, somente ela. Sem maquiagem. Eu sou assim. Como se olhando no espelho e achando justo e digno o que via.
Eu queria tanto isso. Eu ainda quero, na verdade.
Eu sempre chegava na consulta mais ou menos no meio de Cornflake Girl. Totalmente de cara ensopada (e muitas vezes a choradeira continuava entre as quatro paredes).
Normalmente eu saía da sessão me sentindo melhor. E lá estavam as próximas irmãzinhas pra dar a mão pra mim e me fazer sentir embalada de novo. Eu descia a Angélica e quando começava Cloud on My Tongue era meio mágico, essa música sempre me deu uma sensação de sopro de vida, de fragilidade... kiss the violets as they’re waking up sempre me soou um verso tão imensamente delicado, tal qual a música.
Às vezes eu começava a ouvir o disco de novo quando saía da sessão. Acho que isso acontecia quando eu saía não tão melhor, quando ouvia coisas que me deixavam ainda confusa e sem rumo e então eu precisava de mais colo. Ouvir o UTP nesses momentos era eu cuidando de mim mesma.
Ainda hoje, quando começo a ouvir Tears on the sleeve of a man... eu automaticamente me vejo subindo a Angélica, é instantâneo. E choro. Esse disco sempre vai representar o colo, uma mão que acaricia e no fundo diz que tudo vai ficar bem no momento em que eu mais precisava, no momento em que decidi dar um basta naquela vida de mais baixos do que altos, de desconforto permanente, de autoflagelação.
Hoje eu faço terapia com outra profissional, em outro consultório. Caminho outro trajeto. Já experimentei colocar o UTP pra ouvir nesse trajeto pra ver se ele funciona como em 2007.
Não, não funciona.
Provavelmente porque eu mudei. Provavelmente porque hoje meus medos e disfunções são de outra ordem, mais madura, se é que dá pra dizer isso. Hoje eu pago para mexer em questões mais de entranhas. Mas sei que hoje isso só é possível porque Tori, com seu Under the Pink, colocou-me no colo lá atrás e me embalou, dando forças pra continuar caminhando naquela estrada cheia de pedras – e eu me sentia descalça. Foi a força de que eu precisava naquele momento áspero. Mas também me empurrou. Era o que eu sentia quando ela subitamente gritava What’s it gonna take till my baby is alright.
E muitas vezes, quando já estava quase chegando em casa, eu sentia uma espécie de aviso com Yes, Anastasia e seus acordes fortes e vigorosos. We’ll see how brave you are... era um aviso pra mim. Eu imaginava Tori dizendo “quero só ver, hein”. Estava fora de cogitação decepcioná-la. E acho que não a decepcionei.
---
Samanta Alcardo tem 30 anos, é casada e tradutora de inglês. Trabalha em um escritório de advocacia, embora não curta Direito. Adora amigos, música e cinema, porém odeia um monte de outras coisas também, tudo na mesma intensidade. Vive usando letras de música para expressar o que sente porque nem sempre consegue dizer.
Era 2007, ano mais reviravolta da minha vida e ano em que comecei a fazer terapia. Ano em que fui diagnosticada com depressão crônica pela primeira vez. Ano em que fui medicada.
Um ano tempestivo, difícil, sofrido, chorado, mas ainda assim um bom ano.
A sessão começava às 18h30, às terças-feiras. Eu saía do trabalho às 18h e subia a Av. Angélica a pé até o consultório. Foi o ano em que comecei a ouvir o Under the Pink, justamente nesse trajeto até o consultório.
Preciso deixar claro que, nessa época, esse disco teve um papel que nenhum outro disco teve pra mim. Ele me pegava no colo. Pra mim, a maior beleza do UTP são as melodias e isso eu acho até hoje. Nenhum outro disco da Tori tem melodias tão apaziguadoras, tão confortantes, tão pacificadoras para mim. Em 2007, eu não me importava muito com as letras do UTP, digo, no sentido de “essa música é sobre isso”. Mas frases soltas tinham sua importância e davam conselhos, como se fossem irmãzinhas que eu tinha naquele momento em que me sentia tão sem chão, tão no escuro. Mas a maior característica dessas irmãzinhas eram as melodias.
Os primeiros acordes de Pretty Good Year já me faziam desmanchar e cair em prantos em plena Av. Angélica. Era sempre na esquina logo depois do prédio da Quadrant, empresa em que eu trabalhava. Porque naquela época eu segurava o choro por todo o horário de trabalho. Então quando eu saía era a hora de soltar o ar, de admitir que nada estava bem e de agir como tal. Tears on the sleeve of a man Don’t wanna be a boy today... e eu já nem enxergava a calçada. Finalmente Tori tinha chegado no meu dia e pra ela eu não precisava fingir nada, ela sabia onde eu estava.
Ela me conhecia.
Esse início de terapia foi um caos. Nada é pior do que verbalizar tudo que se sente, principalmente quando você nunca fez isso antes diante de um profissional. É como admitir que tudo está acontecendo. E eu fugi, eu juro que tentei. Mas uma hora não deu mais. E quando eu decidi ir para o consultório uma vez por semana, descobri que toda aquela tristeza e peso que tinham me acompanhado até então não precisavam estar ali. Não faziam parte de mim, que coisa. Como? Existe uma versão da Samanta sem tudo isso? Sem a inadequação, sem a falta de tato e habilidade pra lidar com as pessoas? Sem a indisposição diária para lidar com o mundo? Hold onto nothing As fast as you can...
Esse disco me embalava e quando eu ouvia o piano delicado – embora meio sufocado – de Bells for Her, de alguma maneira me sentia num lugar seguro.
Past the Mission continuava a me nutrir de carinho, a afagar meus cabelos. Sempre achei essa música a primeira mais “faceira” do disco, era um momento em que eu conseguia respirar. E sempre ouvindo essa música, não sei muito por que eu me lembrava da foto da Tori na capa de trás do disco. Sempre achei aquela foto tão linda, ela ali, de frente, sem pose nem muita expressão facial combinada, somente ela. Sem maquiagem. Eu sou assim. Como se olhando no espelho e achando justo e digno o que via.
Eu queria tanto isso. Eu ainda quero, na verdade.
Eu sempre chegava na consulta mais ou menos no meio de Cornflake Girl. Totalmente de cara ensopada (e muitas vezes a choradeira continuava entre as quatro paredes).
Normalmente eu saía da sessão me sentindo melhor. E lá estavam as próximas irmãzinhas pra dar a mão pra mim e me fazer sentir embalada de novo. Eu descia a Angélica e quando começava Cloud on My Tongue era meio mágico, essa música sempre me deu uma sensação de sopro de vida, de fragilidade... kiss the violets as they’re waking up sempre me soou um verso tão imensamente delicado, tal qual a música.
Às vezes eu começava a ouvir o disco de novo quando saía da sessão. Acho que isso acontecia quando eu saía não tão melhor, quando ouvia coisas que me deixavam ainda confusa e sem rumo e então eu precisava de mais colo. Ouvir o UTP nesses momentos era eu cuidando de mim mesma.
Ainda hoje, quando começo a ouvir Tears on the sleeve of a man... eu automaticamente me vejo subindo a Angélica, é instantâneo. E choro. Esse disco sempre vai representar o colo, uma mão que acaricia e no fundo diz que tudo vai ficar bem no momento em que eu mais precisava, no momento em que decidi dar um basta naquela vida de mais baixos do que altos, de desconforto permanente, de autoflagelação.
Hoje eu faço terapia com outra profissional, em outro consultório. Caminho outro trajeto. Já experimentei colocar o UTP pra ouvir nesse trajeto pra ver se ele funciona como em 2007.
Não, não funciona.
Provavelmente porque eu mudei. Provavelmente porque hoje meus medos e disfunções são de outra ordem, mais madura, se é que dá pra dizer isso. Hoje eu pago para mexer em questões mais de entranhas. Mas sei que hoje isso só é possível porque Tori, com seu Under the Pink, colocou-me no colo lá atrás e me embalou, dando forças pra continuar caminhando naquela estrada cheia de pedras – e eu me sentia descalça. Foi a força de que eu precisava naquele momento áspero. Mas também me empurrou. Era o que eu sentia quando ela subitamente gritava What’s it gonna take till my baby is alright.
E muitas vezes, quando já estava quase chegando em casa, eu sentia uma espécie de aviso com Yes, Anastasia e seus acordes fortes e vigorosos. We’ll see how brave you are... era um aviso pra mim. Eu imaginava Tori dizendo “quero só ver, hein”. Estava fora de cogitação decepcioná-la. E acho que não a decepcionei.
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Samanta Alcardo tem 30 anos, é casada e tradutora de inglês. Trabalha em um escritório de advocacia, embora não curta Direito. Adora amigos, música e cinema, porém odeia um monte de outras coisas também, tudo na mesma intensidade. Vive usando letras de música para expressar o que sente porque nem sempre consegue dizer.
terça-feira, 30 de outubro de 2012
Flavors: To Venus And Back
Agora, chegou a vez de revisitar o To Venus And Back na série Flavors. Danilo Pontes (facebook), responsável por nos apresentar o álbum, o fez de forma extremamente sutil e etérea, construindo sua imagem com recortes de pensamentos, sentimentos, diálogos e uma certa ausência, uma ausência que vem e vai em suas palavras. Tudo isso é o Venus. São essas as emoções que provavelmente vão lhe acometer se visitá-lo, e dele voltar. Ou não voltar...
Ok, abri os olhos e estava no terraço do meu apartamento olhando para o chão, e tenho... Bem... Medo de altura. É mais ou menos por aí que quero começar a contar o que sinto quando ouço o Venus. Acabei de perder contato com alguém que significou muito e bem... Podemos dizer que tentativas de controle e vampirismos eram inclusos no pacote, mas ainda não sabia como seria possível sair de círculos viciosos tão rapidamente, como transcender e ver o mundo com outros olhos, fora de órbita.
Então seguindo o fluxo constante da vida e conversando com amigos eu percebi que o assunto era sempre sobre mim e como me sentia. As pessoas puxavam conversas e assuntos no qual eu sempre acabava conduzindo ao mesmo final: qualquer complemento que envolvia meus discursos e o que eu posso fazer pra contribuir, mexer, sentir, interferir... Pessoas conhecidas que eu sentia a imensa vontade de agradar e fazê-las sentirem-se bem ao meu lado. Pra quê? Hora ou outra estaremos instáveis de novo e não vai ter muito que se fazer a respeito.
Agora admito que embora não entenda minha necessidade de interferir e ser interferido, controlar e ser controlado, eu nunca acreditei que dentro de um relacionamento, no qual o amor foi o motivo da união a priori, pudesse existir tanta sede de poder e controle. E a sedução da coisa toda, como isso queima e como é bom queimar, porém queimei tanto que me perdi de mim mesmo. Não faço ideia de quem habita esse corpo, se fui feito híbrido de fato ou se eu próprio tenho algo a acrescentar, algo relevante. Não sei!
A resposta apareceu depois de muitos choros e frustrações numa epifania que vem se estendendo nos últimos meses: Eu. Preciso me conhecer e permitir que isso aconteça. O que vem sendo um desafio até então, milhares de pensamentos e hábitos já esquecidos a tempos transbordam em momentos mais surpreendentes possíveis desde que comecei a me aprofundar melhor no Venus e... um... Senti-lo.
Piece by piece, eu vou aprendendo como aprender.
Arredores de BH por volta das 22h:
Viajando sozinho de ônibus numa quinta feira tanto quanto corrida. Perdi boa parte de um entretenimento pessoal um tanto quanto necessário. Por sorte consegui salvar um ingrediente no fundo do bolso esquerdo para executar um feitiço assim que o ônibus fizesse a próxima parada para a janta.
Pois bem, desci e fiz um feitiço improvisado que deu certo.
Logo em seguida, já estava em minha poltrona, quando repentinamente avistei um cachorro faminto e peludo, um membro em potencial da TV colosso, ele pedia comida e as pessoas o ignoravam e expressavam asco e repulsa.
Devo dizer que entre humanos e animais não vejo a menor diferença, é estranho ver esse tipo de intolerância se manifestar em seres ditos inferiores.
Automaticamente lembrei-me do Alceu. Ele que dividira da mesma afeição e indignação a situações como esta, está agora à milhas de distância, incomunicável.
Uma saudade rancorosa subiu o ônibus e se apresentou como nova passageira. Era peluda e possuía um nariz protuberante. Sentou-se ao meu lado e então começamos a conversar:
-E quanto tempo te castigas?
-Desde que ele se foi.
-E quanto tempo o castigas?
-Não hei de saber, desde muito tempo.
Às vezes esperam no mesmo ponto
às vezes viajam juntos
Mas como saber qual rumo tomar se minha bússola não te encontra?
Hei de guardar minha alma se um dia nossas ternuras voltem a pernoitar.
Nunca me dei o trabalho de analisar o todo como objeto de estudo, mas linhas e cores formam todo, e pictoricamente falando, vejo uma linha, de mim a você. E ela não se parte. Nunca! Vejo isso em todos os quadros que pinto pra você. O que fazer?
Nada, e faria nada com você o dia todo.
Por que só o que importa é mantê-la constante, mas amar não é isso e violetas... não sei o que sentir com essas cores.
-Sempre penso em ti, além da conta! Nunca gostei de culpa-lo por isso.
-Nem acho que seria exatamente esse o caso!
-Mas é!
-Como assim?
-Por que pensas nele demais, projeta tuas dúvidas e anseios naquela relação tão perfeita e harmônica!
-Não é bem assim, tuas respostas são harmônicas por causa das perguntas dele, tu danças o tango, sente o sabor e isso é harmônico, forte ou fraco, mas harmônico.
-Ele não pode ser sempre um espelho.
-Não!
-E por que acho que é?
-Dividimos laços fortes de solidariedade, principalmente em tempestades.
-E durante a calmaria?
-Temos problemas, vejo linhas separadas em intervalos, e que intervalos tortuosos... às vezes mergulhamos no mesmo aquário e dormimos juntos assistindo aquele filme engraçado do peixe azul com perda de memória recente, até nisso estamos morrendo.
-O que fazer?
---
"dividido em dois e mais unidos que nunca, sou eu e vocês."
Ok, abri os olhos e estava no terraço do meu apartamento olhando para o chão, e tenho... Bem... Medo de altura. É mais ou menos por aí que quero começar a contar o que sinto quando ouço o Venus. Acabei de perder contato com alguém que significou muito e bem... Podemos dizer que tentativas de controle e vampirismos eram inclusos no pacote, mas ainda não sabia como seria possível sair de círculos viciosos tão rapidamente, como transcender e ver o mundo com outros olhos, fora de órbita.
Então seguindo o fluxo constante da vida e conversando com amigos eu percebi que o assunto era sempre sobre mim e como me sentia. As pessoas puxavam conversas e assuntos no qual eu sempre acabava conduzindo ao mesmo final: qualquer complemento que envolvia meus discursos e o que eu posso fazer pra contribuir, mexer, sentir, interferir... Pessoas conhecidas que eu sentia a imensa vontade de agradar e fazê-las sentirem-se bem ao meu lado. Pra quê? Hora ou outra estaremos instáveis de novo e não vai ter muito que se fazer a respeito.
Agora admito que embora não entenda minha necessidade de interferir e ser interferido, controlar e ser controlado, eu nunca acreditei que dentro de um relacionamento, no qual o amor foi o motivo da união a priori, pudesse existir tanta sede de poder e controle. E a sedução da coisa toda, como isso queima e como é bom queimar, porém queimei tanto que me perdi de mim mesmo. Não faço ideia de quem habita esse corpo, se fui feito híbrido de fato ou se eu próprio tenho algo a acrescentar, algo relevante. Não sei!
A resposta apareceu depois de muitos choros e frustrações numa epifania que vem se estendendo nos últimos meses: Eu. Preciso me conhecer e permitir que isso aconteça. O que vem sendo um desafio até então, milhares de pensamentos e hábitos já esquecidos a tempos transbordam em momentos mais surpreendentes possíveis desde que comecei a me aprofundar melhor no Venus e... um... Senti-lo.
Piece by piece, eu vou aprendendo como aprender.
Arredores de BH por volta das 22h:
Viajando sozinho de ônibus numa quinta feira tanto quanto corrida. Perdi boa parte de um entretenimento pessoal um tanto quanto necessário. Por sorte consegui salvar um ingrediente no fundo do bolso esquerdo para executar um feitiço assim que o ônibus fizesse a próxima parada para a janta.
Pois bem, desci e fiz um feitiço improvisado que deu certo.
Logo em seguida, já estava em minha poltrona, quando repentinamente avistei um cachorro faminto e peludo, um membro em potencial da TV colosso, ele pedia comida e as pessoas o ignoravam e expressavam asco e repulsa.
Devo dizer que entre humanos e animais não vejo a menor diferença, é estranho ver esse tipo de intolerância se manifestar em seres ditos inferiores.
Automaticamente lembrei-me do Alceu. Ele que dividira da mesma afeição e indignação a situações como esta, está agora à milhas de distância, incomunicável.
Uma saudade rancorosa subiu o ônibus e se apresentou como nova passageira. Era peluda e possuía um nariz protuberante. Sentou-se ao meu lado e então começamos a conversar:
-E quanto tempo te castigas?
-Desde que ele se foi.
-E quanto tempo o castigas?
-Não hei de saber, desde muito tempo.
Às vezes esperam no mesmo ponto
às vezes viajam juntos
Mas como saber qual rumo tomar se minha bússola não te encontra?
Hei de guardar minha alma se um dia nossas ternuras voltem a pernoitar.
Nunca me dei o trabalho de analisar o todo como objeto de estudo, mas linhas e cores formam todo, e pictoricamente falando, vejo uma linha, de mim a você. E ela não se parte. Nunca! Vejo isso em todos os quadros que pinto pra você. O que fazer?
Nada, e faria nada com você o dia todo.
Por que só o que importa é mantê-la constante, mas amar não é isso e violetas... não sei o que sentir com essas cores.
-Sempre penso em ti, além da conta! Nunca gostei de culpa-lo por isso.
-Nem acho que seria exatamente esse o caso!
-Mas é!
-Como assim?
-Por que pensas nele demais, projeta tuas dúvidas e anseios naquela relação tão perfeita e harmônica!
-Não é bem assim, tuas respostas são harmônicas por causa das perguntas dele, tu danças o tango, sente o sabor e isso é harmônico, forte ou fraco, mas harmônico.
-Ele não pode ser sempre um espelho.
-Não!
-E por que acho que é?
-Dividimos laços fortes de solidariedade, principalmente em tempestades.
-E durante a calmaria?
-Temos problemas, vejo linhas separadas em intervalos, e que intervalos tortuosos... às vezes mergulhamos no mesmo aquário e dormimos juntos assistindo aquele filme engraçado do peixe azul com perda de memória recente, até nisso estamos morrendo.
-O que fazer?
---
"dividido em dois e mais unidos que nunca, sou eu e vocês."
domingo, 28 de outubro de 2012
Flavors: Abnormally Attracted to Sin
Abnormally Attracted to Sin não é um dos álbuns mais amados pelos toriphiles, ainda que possua nele clássicos instantâneos, como Fast Horse, Give e Lady in Blue; por conta disso, supus que seria difícil achar quem quisesse escrever sobre ele para a série Flavors. Qual não foi minha surpresa quando Bossuet Alvim (facebook) habilitou-se a fazer o texto deste disco? E ele foi ainda mais longe: entregou-me uma interessante história de um jovem lidando com seus ditos pecados, história essa que ilustra de forma meticulosa o jogo de poder, abuso, sexo e religião próprio do "Abnormally..."! É com prazer (rs) que lhes apresento seu texto.
Esta história começa à noite. Uma de chuva fraca, ar denso e sensação de abafamento. É uma história de outras, que se colidiram com a minha em diferentes intensidades. Provavelmente por isso, não é linear. Assumo o papel de contador mas são elas que se revelam a despeito de minhas limitações. Estas histórias se casam, se encontram, se refletem com quem ouve e com o que as desfia, mas não têm dono. Se muito, possuem uma autoria do relato, mas buscam sentido em experiências tão pictóricas e sensoriais que não é possível rastrear-lhes as origens.
“Eu te pago um outro drinque, pode virar esse que tá na sua mão” disse o velho no banco alto ao lado de minha mesa. Não o olhei de frente mas podia enxergar com clareza a pinta enorme em meio a sua barba branca, refletida em todos os ângulos do bar espelhado. Agradeci com um aceno de cabeça enquanto o garçom trazia um novo copo cheio, gim sem gelo. Ao autor da oferta ia oferecer um sorriso, mas fui distraído pelo moreno que passou pelo corredor à minha frente. Dispensei o idoso interessado em minhas coxas e fui atrás do que havia me contado ser um homem casado para mais uma trepada. Enquanto subia as escadas que levavam ao dark room, me lembrava de como havia chegado ali.
Começou com a decisão. Saí de casa para o fim de um chuvisco ameno, sentindo pressa. O medo de mudar de ideia me fazia acelerar os passos; um mês de indecisão precedeu a ida. Cheguei à porta disposto a desistir mas acabei impulsionado a entrar com a chegada de um cara trintão, de ombros largos, que me brindou com uma piscadela old school. Já dentro da sauna, perdi o flertador de vista e comecei a me despir; era daquilo que eu precisava. Fiquei excitado ao tirar a roupa em frente a tantos homens. Parte dos que circulavam perto dos armários pararam as conversas para me observar, e senti que havia feito a escolha certa. A vontade de vir a um lugar assim e me entregar a vários surgiu quando meu — até então — namorado desligou o telefone. Encerrou meu décimo telefonema.
À décima negativa dele algo se rompeu comigo. Senti que tinha muito acumulado em mim, que precisava voltar ao meu lugar de comando após tanto tempo me arrastando por mais uma chance. O cara que eu acreditava amar havia me dispensado em nome de seus filhos, de sua esposa, me derrubando de um lugar confortável e seguro entre seus braços — ou ainda com ele entre meus braços, o que me garantia ainda mais segurança. A perseguição dele por uma reputação respeitável me levou direto ao limbo da baixa autoestima. E dele para a portinhola da promiscuidade, aquele lugar rescendente a sexo e desinteresse.
Me senti bem ao ser disputado por homens que jamais desejaria. Consegui distribuir sorrisos enquanto disponibilizava meu corpo ao toque de estranhos, de pessoas que em nada lembravam o ex, que não me satisfaziam diretamente. A satisfação chegava, de qualquer modo, quando eu sentia que os dominava, que tomava controle de suas existências durante aqueles minutos a sós. Ou entre três e quatro pessoas. Sem repulsa, sem muito tesão, sem prazer sexual, me conduzi por várias horas de satisfação pessoal por conseguir criar algum valor para os que se interessavam por mim, entre os que não se sentiam interessantes o bastante. Suficiente para me recolocar em meu cenário de poder após o choque da separação.
Saí daquele lugar úmido para sentir uma brisa fria no Centro da cidade. Derramei últimas lágrimas pela relação encerrada, mas consegui me sentir como se reocupasse um espaço meu na consciência. Longe dos sacrifícios que havia dedicado ao outro. Na praça a poucas quadras da sauna encontrei três amigas: Ofélia, Alison e Veronica. Madrugada, policiamento fraco, algumas travestis no banco próximo, acendemos um baseado. Voltei a me interromper.
A porta de entrada para uma outra consciência, ou apenas uma viagem para longe dos problemas imediatos — seja como for, a onda bateu de um jeito diferente dos outros momentos. Com o cigarro queimando entre os dedos me lembrei que, antes de experimentar qualquer tipo de droga, minha única jornada para fora dos limites conscientes havia acontecido em um ritual religioso. Nada exótico a princípio, o culto de uma igreja neopentecostal me levou a um outro estado das coisas, desejoso de exceder. E ali entendi uma outra forma de pecado.
Se buscamos sempre o conforto da submissão às regras — daí vem quase todo o meu fascínio por religião, contrapeso ao desregramento com que nasci — essa intenção assume contornos quase eróticos a medida em que me entrego para o condutor, pastor ou profeta. A entidade maior, que é alvo das orações, serve como combustível para me manter aceso em meio à multidão de crentes. Quando, através da oração furiosa, revelei alguns de meus incômodos para os irmãos que lotavam o salão, não foi muito diferente do que me arrepiou quando tirei minhas roupas no clube de sexo. Expostos, todos, sob a palavra de algum Senhor, fica fácil criar empatia, mas também muito mais fácil de se enganar com as falsas semelhanças em relação ao próximo.
Não somos parecidos. Ninguém é. Se cheguei a essa conclusão sob influência do entorpecente, não por isso sinto que a verdade se perca. Pelo efeito do tetrahidrocannabinol consigo revisitar as expressões de angústia e euforia que li nos fieis daquela igreja. O pedido vigoroso para fazer parte de algo. A ânsia de integrar um grupo mais forte, vitorioso, cuja orientação vencesse as demais opiniões. Crença. Auto-crença. Condutores de ódio, de medo, em nome da superioridade. Me desliguei daquele culto após uma única sessão, enojado. Mas continuei mantendo contato sexual com um dos pastores, o mesmo que havia me convidado para “conhecer antes de julgar”. Pouco tempo depois, adotei as substâncias ilegais como minha forma pessoal de romper a constância da vida. Acredito que são práticas que correm em paralelo, a da religião lado a lado com a da intoxicação. Uma porta para a fuga. Uma fuga passageira.
“Acho que amor é supervalorizado. Meus pais me amaram e isso não me fez nenhum bem”, disse Veronica. Dentro de minhas reflexões sobre sentimentos, ela e Ofélia ocupam lugares fundamentais e distintos. A ideia de entrega, de sacrifício pelo amor, condenou esta última ao confinamento em papeis de submissão. A primeira, questionadora, é cética quanto a qualquer tipo de envolvimento.
A camiseta de minha amiga tem uma foto de Santa Agnes, que me recorda aqueles versos — “She danc’d along with vague, regardless eyes/Anxious her lips, her breathing quick and short/The hallow’d hour was near at hand: she sighs/Amid the timbrels, and the throng’d resort/Of whisperers in anger, or in sport”. Deve ser gostoso viver como quem se admira, como quem é desejado o tempo todo.
Eu, provavelmente, ainda não estou pronto para abandonar o fascínio que reveste gestos de submissão, os sacrifícios cotidianos que envolvem os relacionamentos. Tentei me diluir no contato físico com um grupo de corpos sedentos, mas por dentro ainda me volto às esperanças de novas conexões. Para ele, o que me deixou, desejo que fique bem. Voltei para casa a passos lentos, sentindo o começo de amanhecer. À janela do meu apartamento, enxerguei a cidade que começava a acordar. Torci para que algo de novo me despertasse daqui a algumas horas, mas para aquela hora — para agora, desejo que ele se encontre após me deixar. De minha parte, prefiro que minha busca continue. Que meus pecados me conduzam.
---
Bossuet Alvim tem 24 anos, é jornalista e não se sai muito bem em autodescrições de um parágrafo. Apesar disso, gosta de saber que o formato existe, pois geralmente rende textos bem-humorados permeados de tiradas espirituosas. De sua parte, não foi capaz de pensar em nada do tipo, mas acha importante ressaltar que vive em Minas Gerais, tem sede de contato com o mar e dedica todo o tempo de que dispõe a ouvir mulheres geniais e suas obras estremecedoras.
Esta história começa à noite. Uma de chuva fraca, ar denso e sensação de abafamento. É uma história de outras, que se colidiram com a minha em diferentes intensidades. Provavelmente por isso, não é linear. Assumo o papel de contador mas são elas que se revelam a despeito de minhas limitações. Estas histórias se casam, se encontram, se refletem com quem ouve e com o que as desfia, mas não têm dono. Se muito, possuem uma autoria do relato, mas buscam sentido em experiências tão pictóricas e sensoriais que não é possível rastrear-lhes as origens.
“Eu te pago um outro drinque, pode virar esse que tá na sua mão” disse o velho no banco alto ao lado de minha mesa. Não o olhei de frente mas podia enxergar com clareza a pinta enorme em meio a sua barba branca, refletida em todos os ângulos do bar espelhado. Agradeci com um aceno de cabeça enquanto o garçom trazia um novo copo cheio, gim sem gelo. Ao autor da oferta ia oferecer um sorriso, mas fui distraído pelo moreno que passou pelo corredor à minha frente. Dispensei o idoso interessado em minhas coxas e fui atrás do que havia me contado ser um homem casado para mais uma trepada. Enquanto subia as escadas que levavam ao dark room, me lembrava de como havia chegado ali.
Começou com a decisão. Saí de casa para o fim de um chuvisco ameno, sentindo pressa. O medo de mudar de ideia me fazia acelerar os passos; um mês de indecisão precedeu a ida. Cheguei à porta disposto a desistir mas acabei impulsionado a entrar com a chegada de um cara trintão, de ombros largos, que me brindou com uma piscadela old school. Já dentro da sauna, perdi o flertador de vista e comecei a me despir; era daquilo que eu precisava. Fiquei excitado ao tirar a roupa em frente a tantos homens. Parte dos que circulavam perto dos armários pararam as conversas para me observar, e senti que havia feito a escolha certa. A vontade de vir a um lugar assim e me entregar a vários surgiu quando meu — até então — namorado desligou o telefone. Encerrou meu décimo telefonema.
À décima negativa dele algo se rompeu comigo. Senti que tinha muito acumulado em mim, que precisava voltar ao meu lugar de comando após tanto tempo me arrastando por mais uma chance. O cara que eu acreditava amar havia me dispensado em nome de seus filhos, de sua esposa, me derrubando de um lugar confortável e seguro entre seus braços — ou ainda com ele entre meus braços, o que me garantia ainda mais segurança. A perseguição dele por uma reputação respeitável me levou direto ao limbo da baixa autoestima. E dele para a portinhola da promiscuidade, aquele lugar rescendente a sexo e desinteresse.
Me senti bem ao ser disputado por homens que jamais desejaria. Consegui distribuir sorrisos enquanto disponibilizava meu corpo ao toque de estranhos, de pessoas que em nada lembravam o ex, que não me satisfaziam diretamente. A satisfação chegava, de qualquer modo, quando eu sentia que os dominava, que tomava controle de suas existências durante aqueles minutos a sós. Ou entre três e quatro pessoas. Sem repulsa, sem muito tesão, sem prazer sexual, me conduzi por várias horas de satisfação pessoal por conseguir criar algum valor para os que se interessavam por mim, entre os que não se sentiam interessantes o bastante. Suficiente para me recolocar em meu cenário de poder após o choque da separação.
Saí daquele lugar úmido para sentir uma brisa fria no Centro da cidade. Derramei últimas lágrimas pela relação encerrada, mas consegui me sentir como se reocupasse um espaço meu na consciência. Longe dos sacrifícios que havia dedicado ao outro. Na praça a poucas quadras da sauna encontrei três amigas: Ofélia, Alison e Veronica. Madrugada, policiamento fraco, algumas travestis no banco próximo, acendemos um baseado. Voltei a me interromper.
A porta de entrada para uma outra consciência, ou apenas uma viagem para longe dos problemas imediatos — seja como for, a onda bateu de um jeito diferente dos outros momentos. Com o cigarro queimando entre os dedos me lembrei que, antes de experimentar qualquer tipo de droga, minha única jornada para fora dos limites conscientes havia acontecido em um ritual religioso. Nada exótico a princípio, o culto de uma igreja neopentecostal me levou a um outro estado das coisas, desejoso de exceder. E ali entendi uma outra forma de pecado.
Se buscamos sempre o conforto da submissão às regras — daí vem quase todo o meu fascínio por religião, contrapeso ao desregramento com que nasci — essa intenção assume contornos quase eróticos a medida em que me entrego para o condutor, pastor ou profeta. A entidade maior, que é alvo das orações, serve como combustível para me manter aceso em meio à multidão de crentes. Quando, através da oração furiosa, revelei alguns de meus incômodos para os irmãos que lotavam o salão, não foi muito diferente do que me arrepiou quando tirei minhas roupas no clube de sexo. Expostos, todos, sob a palavra de algum Senhor, fica fácil criar empatia, mas também muito mais fácil de se enganar com as falsas semelhanças em relação ao próximo.
Não somos parecidos. Ninguém é. Se cheguei a essa conclusão sob influência do entorpecente, não por isso sinto que a verdade se perca. Pelo efeito do tetrahidrocannabinol consigo revisitar as expressões de angústia e euforia que li nos fieis daquela igreja. O pedido vigoroso para fazer parte de algo. A ânsia de integrar um grupo mais forte, vitorioso, cuja orientação vencesse as demais opiniões. Crença. Auto-crença. Condutores de ódio, de medo, em nome da superioridade. Me desliguei daquele culto após uma única sessão, enojado. Mas continuei mantendo contato sexual com um dos pastores, o mesmo que havia me convidado para “conhecer antes de julgar”. Pouco tempo depois, adotei as substâncias ilegais como minha forma pessoal de romper a constância da vida. Acredito que são práticas que correm em paralelo, a da religião lado a lado com a da intoxicação. Uma porta para a fuga. Uma fuga passageira.
“Acho que amor é supervalorizado. Meus pais me amaram e isso não me fez nenhum bem”, disse Veronica. Dentro de minhas reflexões sobre sentimentos, ela e Ofélia ocupam lugares fundamentais e distintos. A ideia de entrega, de sacrifício pelo amor, condenou esta última ao confinamento em papeis de submissão. A primeira, questionadora, é cética quanto a qualquer tipo de envolvimento.
A camiseta de minha amiga tem uma foto de Santa Agnes, que me recorda aqueles versos — “She danc’d along with vague, regardless eyes/Anxious her lips, her breathing quick and short/The hallow’d hour was near at hand: she sighs/Amid the timbrels, and the throng’d resort/Of whisperers in anger, or in sport”. Deve ser gostoso viver como quem se admira, como quem é desejado o tempo todo.
Eu, provavelmente, ainda não estou pronto para abandonar o fascínio que reveste gestos de submissão, os sacrifícios cotidianos que envolvem os relacionamentos. Tentei me diluir no contato físico com um grupo de corpos sedentos, mas por dentro ainda me volto às esperanças de novas conexões. Para ele, o que me deixou, desejo que fique bem. Voltei para casa a passos lentos, sentindo o começo de amanhecer. À janela do meu apartamento, enxerguei a cidade que começava a acordar. Torci para que algo de novo me despertasse daqui a algumas horas, mas para aquela hora — para agora, desejo que ele se encontre após me deixar. De minha parte, prefiro que minha busca continue. Que meus pecados me conduzam.
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Bossuet Alvim tem 24 anos, é jornalista e não se sai muito bem em autodescrições de um parágrafo. Apesar disso, gosta de saber que o formato existe, pois geralmente rende textos bem-humorados permeados de tiradas espirituosas. De sua parte, não foi capaz de pensar em nada do tipo, mas acha importante ressaltar que vive em Minas Gerais, tem sede de contato com o mar e dedica todo o tempo de que dispõe a ouvir mulheres geniais e suas obras estremecedoras.
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sexta-feira, 26 de outubro de 2012
Flavors: American Doll Posse
Quando Hamilton Guilherme (facebook) se habilitou a escrever sobre o American Doll Posse, um dos discos de maior apelo visual de Tori, para a série Flavors, sugeri a ele que ao invés de escrever um texto corrido fizesse uma série de poesias, nas quais retratasse cada uma das dolls. Assim, eles fez cinco odes às "bonecas" de Tori, usando-se de referências marcantes e uma boa dose de surrealismo, bem própria aos textos dele. Hamilton mantém com um amigo também um blog de poesia, Lúcidos e Extasiados, mas por agora vamos nos deter a conhecer as dolls, sob sua ótica.
(a arte que ilustra o post foi extraída do blog Visual Audities)
I - Clyde
Eu absorvi toda a luz
E me tornei parcialmente cinza
Sob o inebriar dos cigarros
E suaves incensos,
Eu recolho as estrelas cadentes
Abandonadas nas esquinas
Pensei ter ouvido a voz calada
Da mais soturna arqueira
Meu cálice transborda
E os exércitos se tornam poeira
Pensei ter passado a ponte
A ponte que nos separa
Pensei ter visto em seus olhos
Um brilho que me faltara
E agora que estou sozinha
Distraio-me com o que tenho
Eu observo universos
Em pleno movimento
E assim guardo em meu olhar
Um horizonte em portento
Um outono branco e preto,
Durando não mais que um momento
II - Isabel
Bravo intenso mundo
Abaixo dos nossos pés
De heróis ancestrais
E caídos imperadores
Somos como reféns
De uma guerra civil
Somos um campo de batalha
De trapaceiros sonhadores
Em uma eterna caçada
Aqui todos nós vamos
Em busca de seiva nova,
Dos deuses da lua,
Até as colinas da liberdade
Nós somos vendavais
e almas impuras
Querendo alguma resposta
Para nossas verdades
Na garoupa de meu cavalo baio,
Busquei um espírito rebelde e valente
Apenas eu e meu arco longo,
Na sapiência da minha bússola,
Ao lado negro do sol
Onde escorre sangue inocente
III - Santa
Deste sagrado e profano
coração em chamas,
Eu deixei para trás
Todas as minhas armas
Em meus olhos de índigo
Há um feitiço secreto
Uma volúpia que decreta
Primavera antecipada
É um maremoto
O meu mais ardente desejo
Eu poderia beijar os céus,
Minha paixão incandescente,
Como um sinuoso vermute
Que eu suavemente despejo
Como pude acreditar?
Estava me perdendo, outra vez
De corpo e alma
Pela mais doce ambrósia
Eu caio em sedução
Eu me torno insensatez
IV - Pip
Eu tenho pisoteado
Naqueles terríveis abutres
Com minhas botas de ferro
E sangue vingado, curtume
Uma adaga em minhas mãos
E uma arma recém carregada
Ouço os passos velozes
Dos meus rivais ferozes
Mas não, não perdi a batalha
Hei de queimar, expurgar
O peso sobre meus ombros
E o instinto aniquilador
Resiste sob os escombros
Sim, mais uma vez de pé,
Estou eu em sua porta
Por outro teste de impacto,
Veludo e criança morta
E quando a sombra dos corvos
Devorarem todas as vísceras
Verão as rosas sangrentas
E mais uma fúria insípida
V - Tori
Quanto todas as peças se unem
Formando a constelação,
A muralha é enfim demolida
Pó de ouro em minhas mãos
Os meus velhos retratos
E fantasmas holográficos
Levam-me ao jardim
De segredos acetinados
Nada além dos olhos,
Os olhos de Violeta
E a branda voz do piano
Cantando até que adormeça
Em cada pedaço de mim
É desvendado um arcano
O mel da abelha assassina
Tão doce, ambrosiano
Os arcanjos de concreto,
Deixei-os em linha reta
Cairão como dominós
É o que meu ventre atesta
E atrás da prisão da Torre
Uma roda gigante, tão só
O delineador do tempo
Irá reduzi-la a pó
Por fim, deitada na relva
Contemplo a noite estrelada
Percebo, foi longa a estadia
Navego de volta pra casa
---
Hamilton Guilherme
19 anos, estudante de arquitetura e urbanismo, aspirante a escritor e sempre à procura de uma paisagem tranqüila ou da companhia de velhos amigos; talvez seja um anarquista com uma lança nas mãos ou um eremita que vive nas montanhas. Pernambucano e libriano, com uma certa tendência à esquizofrenia e um apático sentimento lisérgico nos olhos. Eu sou o azul purpúreo da noite minutos antes da alvorada, eu sou apenas eu mesmo.
(a arte que ilustra o post foi extraída do blog Visual Audities)
I - Clyde
Eu absorvi toda a luz
E me tornei parcialmente cinza
Sob o inebriar dos cigarros
E suaves incensos,
Eu recolho as estrelas cadentes
Abandonadas nas esquinas
Pensei ter ouvido a voz calada
Da mais soturna arqueira
Meu cálice transborda
E os exércitos se tornam poeira
Pensei ter passado a ponte
A ponte que nos separa
Pensei ter visto em seus olhos
Um brilho que me faltara
E agora que estou sozinha
Distraio-me com o que tenho
Eu observo universos
Em pleno movimento
E assim guardo em meu olhar
Um horizonte em portento
Um outono branco e preto,
Durando não mais que um momento
II - Isabel
Bravo intenso mundo
Abaixo dos nossos pés
De heróis ancestrais
E caídos imperadores
Somos como reféns
De uma guerra civil
Somos um campo de batalha
De trapaceiros sonhadores
Em uma eterna caçada
Aqui todos nós vamos
Em busca de seiva nova,
Dos deuses da lua,
Até as colinas da liberdade
Nós somos vendavais
e almas impuras
Querendo alguma resposta
Para nossas verdades
Na garoupa de meu cavalo baio,
Busquei um espírito rebelde e valente
Apenas eu e meu arco longo,
Na sapiência da minha bússola,
Ao lado negro do sol
Onde escorre sangue inocente
III - Santa
Deste sagrado e profano
coração em chamas,
Eu deixei para trás
Todas as minhas armas
Em meus olhos de índigo
Há um feitiço secreto
Uma volúpia que decreta
Primavera antecipada
É um maremoto
O meu mais ardente desejo
Eu poderia beijar os céus,
Minha paixão incandescente,
Como um sinuoso vermute
Que eu suavemente despejo
Como pude acreditar?
Estava me perdendo, outra vez
De corpo e alma
Pela mais doce ambrósia
Eu caio em sedução
Eu me torno insensatez
IV - Pip
Eu tenho pisoteado
Naqueles terríveis abutres
Com minhas botas de ferro
E sangue vingado, curtume
Uma adaga em minhas mãos
E uma arma recém carregada
Ouço os passos velozes
Dos meus rivais ferozes
Mas não, não perdi a batalha
Hei de queimar, expurgar
O peso sobre meus ombros
E o instinto aniquilador
Resiste sob os escombros
Sim, mais uma vez de pé,
Estou eu em sua porta
Por outro teste de impacto,
Veludo e criança morta
E quando a sombra dos corvos
Devorarem todas as vísceras
Verão as rosas sangrentas
E mais uma fúria insípida
V - Tori
Quanto todas as peças se unem
Formando a constelação,
A muralha é enfim demolida
Pó de ouro em minhas mãos
Os meus velhos retratos
E fantasmas holográficos
Levam-me ao jardim
De segredos acetinados
Nada além dos olhos,
Os olhos de Violeta
E a branda voz do piano
Cantando até que adormeça
Em cada pedaço de mim
É desvendado um arcano
O mel da abelha assassina
Tão doce, ambrosiano
Os arcanjos de concreto,
Deixei-os em linha reta
Cairão como dominós
É o que meu ventre atesta
E atrás da prisão da Torre
Uma roda gigante, tão só
O delineador do tempo
Irá reduzi-la a pó
Por fim, deitada na relva
Contemplo a noite estrelada
Percebo, foi longa a estadia
Navego de volta pra casa
---
Hamilton Guilherme
19 anos, estudante de arquitetura e urbanismo, aspirante a escritor e sempre à procura de uma paisagem tranqüila ou da companhia de velhos amigos; talvez seja um anarquista com uma lança nas mãos ou um eremita que vive nas montanhas. Pernambucano e libriano, com uma certa tendência à esquizofrenia e um apático sentimento lisérgico nos olhos. Eu sou o azul purpúreo da noite minutos antes da alvorada, eu sou apenas eu mesmo.
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