O primeiro texto de nossa série "Flavors" (explicada aqui), será centrado no Scarlet's Walk, e foi escrito por Felipe Colmenero (facebook), toriphile brasiliense que captou com maestria a beleza e mudança que a jornada deste disco representa. O próximo álbum será o Little Earthquakes, mas por agora, deliciem-se com o texto do Felipe.
Um dia, lá em 2002 ou 2003, vi um videoclipe bonito na MTV. Gostei e vi que era com aquele narigudo que fez o filme O Pianista. Um dia, depois de sair da escola, fui andar pelas ruas. Peguei o metrô e fui fazer PN no shopping, mania de adolescente brasiliense. Com minha mochila nas costas e os livros de física, literatura e meu discman. Numa loja de cds, vi escondido dentre as prateleiras, a foto dessa mulher, cabelos ao vento, numa estrada desértica. Gostei da foto. Reconheci: ah... é aquela menina ruiva esquisita que tava naquele clipe.... Por impulso, paguei os 19 reais. Era caro pra mim na época.
Cheguei em casa e ouvi. Tava louco para ouvir aquela música do clipe!
Eu detestei.
Lembro que fiquei tão desapontado com aquelas músicas estranhas e longas e climáticas e malucas e aqueles instrumentos que não sabia o nome. Eu odiei. Guardei no meu porta-cd e fui ouvir qualquer outra coisa como música de fundo enquanto navegava na internet e ia ao bate papo. Deixei o resto guardado na gaveta.
O maior erro da minha vida. Mas quem sabe o que é vida aos 16 anos?
Um dia, um ex-namorado americano de uma tia minha, ao me visitar no Brasil, viu a capa do CD no meio da bagunça que estava meu quarto. Era Scarlet's Walk. Ele disse: — Oh, you like Tori Amos? Back in America, they say she's music for lesbians. Gays love her...
Eu disse: — And what's wrong with that?
Houve um silêncio.
Peguei o CD, por teimosia e constragimento e fui ouvir. Lembrem, eu ainda não sabia o que era vida, mas agora já tinha 18 anos. Papai batia nas minhas costas. "Já é um homem grande". E me dava as chaves do carro. Eu olhava, em silêncio para aquela imagem naquele CD e via essa mulher. Sou eu um homem grande?
À noite, estava no carro. Ouvia e ouvia e ouvia. As notas, os tecladinhos, as orquestrações. Aquela confusão veio a minha cabeça. E fui ver... do que raios se trata esse álbum?! O que são as letras? O que significa esses desenhos nesse mapa de back in America?
Parei o carro e resolvi ler as letras. Parei o carro e fui ver as fotos das polaróides. Parei o carro e pensei: quem é essa mulher? E porque ela está nessa estrada desértica?
Olhei pra frente e vi, mesmo no frio da noite, que eu estava dirigindo numa estrada desértica.
Havia deserto e muita estrada pra rodar pela frente. Cheguei em casa. O caminho foi exatamente a duração de Amber Waves a Gold Dust, a primeira e última faixa do álbum. Entrei na internet e pesquisei o que era aquela dúvida. A resposta do site de procura:
"Tori Amos, in her latest album, Scarlet's Walk, tells a story about a trip."
Olhei aquela foto do mapa, as fotinhas da ruiva esquisita, a estrada.
"Felipe, como você é burro! É claro que esse CD é sobre uma viagem! Como você não percebeu o que era óbvio?!"
Mas que viagem é essa?
Eu ainda sou muito burro. Nada em Tori Amos é evidente.
A viagem começa no Alaska e termina... onde ela termina? Tori descreve uma persona, um alter ego que a si descobre, e relata como um diário de viagem pelo Big USA. Uma nada na vida que não sabe muito de sua história e tem sapatos bonitos. Uma sem nada do que fazer, exceto viajar por aí. Cada música é um trecho de suas aventuras. É uma linha do tempo. Cada música é seu encontro com pessoas loucas, com experiências com cigarrinhos, com o vento, com a injustiça entre as fronteiras, com donas de casa numa noite nos bares, com a homofobia, com a política, religião, misticismo e incertezas, com atrizes pornôs, com conversas enviesadas. Afinal, todo mundo tem que pedir informações no meio do caminho, acordar e comer uma panqueca antes de pedir uma carona, e sentir o preconceito, o olhar receoso e curioso de ser um(a) viajante.
Com partidas. E despedidas.
Sabe que eu penso?
BULLSHIT.
A caminhada é uma construção. Scarlet's Walk foi o jeito dela me dar um tapa na cara é dizer... BULLSHIT! Essa viagem não é pegar uma carona e tirar foto pelo caminho, meu querido.
É um amadurecimento. É uma jornada que se faz em segundos e você não precisa saber quando vai começar. É aquele piano crescente e confuso que toca na cabeça quando se depara com a estrada pela frente. O sol é forte, quente e constante. mas uma hora anoitece.
Quando anoitece e você entra no quartinho do hotel, pés cansados, sem dinheiro no bolso, sem gasolina no carro. Você já não é mais você. Você é o solo onde inocentes morreram, você é o mel que caiu na panqueca, você é a pistola que agride, você é a vítima que se rende, você é a saudade que se torna dourada, você é o refém, você é a história. Você é aquele que se vende. Você é aquele que é vendido. Você é aquele que vende. Você é aquele que olha atento ao retrovisor. Você é aquele da quarta feira, cotidiano e entediante. Você é uma oração. Você.
Você é a viagem.
Você é o mapa.
Mas desculpem-me, eu estou dizendo uma mentira.
Um dia, peguei o carro da minha mãe emprestado, busquei em casa um garoto, que por acaso, conheci num supermecado, uns meses antes. Para impressionar, eu: —olha escuta isso.
Ele ouviu. Ele soube o que eu ainda não sabia. Eu não havia vivido minha jornada.
Eu só entendi Scarlet's Walk quando ele me disse, aquele querido afeto, hoje ausente, mas cuja foto carrego no bolso do casaco ou na carteira:
— Você é burro, Felipe! Escuta! Não fique se procurando no mapa. É noite e você não vai enxergar nada. Ouça!
A viagem, veio ao olhar a estrada. Veio. Consegui olhar a estrada na escuridão. Veio da caixa de som do carro, na porta esquerda. Vai ser uma volta longa pela cidade.
Mas Scarlet, aquela persona (?) me falou bem baixinho no rádio quando, na volta pra casa, ele colocou sua mão na minha nuca, sentado ao meu lado no banco do passageiro.
Aí, ao som de instrumentos que ainda ainda ainda não sei o nome, eu fechei os olhos e pisei no acelerador.
Me arrependo até hoje de ter deixado por anos esse maldito CD guardado na gaveta.
Me orgulho de ter a ingenuidade, aos 16 anos, de comprar CDs por impulso.
Me amendrota saber que eu dividi com alguém essa viagem.
Porém jornadas são interseções. Nas estradas há o caminho da esquerda e o caminho da direita. Cada um escolherá o seu, um dia.
As três primeiras notas saindo pelo fone de ouvido, naquele mesmo supermercado, bem... pulls me back another year. I was here.
Scarlet's Walk ainda me confunde.
Mas quem sabe o que é a vida, agora, aos 26 anos? Eu só sei que terei um dia ouro em pó nas mãos.
Talvez eu já tenha.
Felipe Colmenero (11/10/2012, véspera do Dia das Crianças, ao som de... adivinha?)
On my way up north...
Felipe Colmenero
26 anos e ainda preso à nostalgia e às saudades do que ainda não veio. Pensa que é um autista plástico, escritor ninfomaníaco e cozinheiro de mão cheia, mas o que faz de melhor é ser cantor desafinado de karaokê, beber vodka barata e escrever poemas nas paredes da casa com péssima caligrafia. Brasiliense aquariano com ascendente em aquário, logo um arrogante cínico e/ou um ativista esquizofrênico que chora escondidinho no chuveiro, Enquanto pinta o cabelo de rosa, Sou uma imitação de mim mesmo.
5 comentários:
GENTE Q TEXTO PERFEITO, AMEI MEGA EMOCIONANTE, ESPERANDO PELOS PROXIMOS, TBM AMO O SCARLET, JUNTO COM O LITTLE EARTHQUAKES, THE BEEKEPER, E FROM CHOIRGIRL É UM DOS EMSU PREFERIDOS
Nossa, que bom que você gostou, Bettie! Logo mais postaremos novos textos :D
esperando ansiosamente
muito bom, lendo dá pra ter a sua própria concepção do album também...
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