O Under The Pink é um álbum feminino. Mesmo que falar isso soe como se o enquadrasse num estereótipo, é uma obra que traça seu caminho por dentro, invocando emoções diversas: delicadas, brutais, rancorosas ou de compaixão, mas que mais se escondem do que se mostram. E depois de ler o texto de Samanta Alcardo para a série Flavors, sinto que essas discretas emoções estão lá, impressas nas palavras centradas e doces que denotam sua relação de amor com o disco. É como se ali estivesse a serenidade necessária para enfrentar uma tempestade; uma serenidade que é ameaçada a cada cinco segundos, mas que se mostra fundamental para encontrar um porto seguro. E as companheiras de viagem dela, assim como de outras muitas pessoas, foram exatamente as garotas que vivem debaixo do rosa. Logo abaixo do rosa.
Era 2007, ano mais reviravolta da minha vida e ano em que comecei a fazer terapia. Ano em que fui diagnosticada com depressão crônica pela primeira vez. Ano em que fui medicada.
Um ano tempestivo, difícil, sofrido, chorado, mas ainda assim um bom ano.
A sessão começava às 18h30, às terças-feiras. Eu saía do trabalho às 18h e subia a Av. Angélica a pé até o consultório. Foi o ano em que comecei a ouvir o Under the Pink, justamente nesse trajeto até o consultório.
Preciso deixar claro que, nessa época, esse disco teve um papel que nenhum outro disco teve pra mim. Ele me pegava no colo. Pra mim, a maior beleza do UTP são as melodias e isso eu acho até hoje. Nenhum outro disco da Tori tem melodias tão apaziguadoras, tão confortantes, tão pacificadoras para mim. Em 2007, eu não me importava muito com as letras do UTP, digo, no sentido de “essa música é sobre isso”. Mas frases soltas tinham sua importância e davam conselhos, como se fossem irmãzinhas que eu tinha naquele momento em que me sentia tão sem chão, tão no escuro. Mas a maior característica dessas irmãzinhas eram as melodias.
Os primeiros acordes de Pretty Good Year já me faziam desmanchar e cair em prantos em plena Av. Angélica. Era sempre na esquina logo depois do prédio da Quadrant, empresa em que eu trabalhava. Porque naquela época eu segurava o choro por todo o horário de trabalho. Então quando eu saía era a hora de soltar o ar, de admitir que nada estava bem e de agir como tal. Tears on the sleeve of a man Don’t wanna be a boy today... e eu já nem enxergava a calçada. Finalmente Tori tinha chegado no meu dia e pra ela eu não precisava fingir nada, ela sabia onde eu estava.
Ela me conhecia.
Esse início de terapia foi um caos. Nada é pior do que verbalizar tudo que se sente, principalmente quando você nunca fez isso antes diante de um profissional. É como admitir que tudo está acontecendo. E eu fugi, eu juro que tentei. Mas uma hora não deu mais. E quando eu decidi ir para o consultório uma vez por semana, descobri que toda aquela tristeza e peso que tinham me acompanhado até então não precisavam estar ali. Não faziam parte de mim, que coisa. Como? Existe uma versão da Samanta sem tudo isso? Sem a inadequação, sem a falta de tato e habilidade pra lidar com as pessoas? Sem a indisposição diária para lidar com o mundo? Hold onto nothing As fast as you can...
Esse disco me embalava e quando eu ouvia o piano delicado – embora meio sufocado – de Bells for Her, de alguma maneira me sentia num lugar seguro.
Past the Mission continuava a me nutrir de carinho, a afagar meus cabelos. Sempre achei essa música a primeira mais “faceira” do disco, era um momento em que eu conseguia respirar. E sempre ouvindo essa música, não sei muito por que eu me lembrava da foto da Tori na capa de trás do disco. Sempre achei aquela foto tão linda, ela ali, de frente, sem pose nem muita expressão facial combinada, somente ela. Sem maquiagem. Eu sou assim. Como se olhando no espelho e achando justo e digno o que via.
Eu queria tanto isso. Eu ainda quero, na verdade.
Eu sempre chegava na consulta mais ou menos no meio de Cornflake Girl. Totalmente de cara ensopada (e muitas vezes a choradeira continuava entre as quatro paredes).
Normalmente eu saía da sessão me sentindo melhor. E lá estavam as próximas irmãzinhas pra dar a mão pra mim e me fazer sentir embalada de novo. Eu descia a Angélica e quando começava Cloud on My Tongue era meio mágico, essa música sempre me deu uma sensação de sopro de vida, de fragilidade... kiss the violets as they’re waking up sempre me soou um verso tão imensamente delicado, tal qual a música.
Às vezes eu começava a ouvir o disco de novo quando saía da sessão. Acho que isso acontecia quando eu saía não tão melhor, quando ouvia coisas que me deixavam ainda confusa e sem rumo e então eu precisava de mais colo. Ouvir o UTP nesses momentos era eu cuidando de mim mesma.
Ainda hoje, quando começo a ouvir Tears on the sleeve of a man... eu automaticamente me vejo subindo a Angélica, é instantâneo. E choro. Esse disco sempre vai representar o colo, uma mão que acaricia e no fundo diz que tudo vai ficar bem no momento em que eu mais precisava, no momento em que decidi dar um basta naquela vida de mais baixos do que altos, de desconforto permanente, de autoflagelação.
Hoje eu faço terapia com outra profissional, em outro consultório. Caminho outro trajeto. Já experimentei colocar o UTP pra ouvir nesse trajeto pra ver se ele funciona como em 2007.
Não, não funciona.
Provavelmente porque eu mudei. Provavelmente porque hoje meus medos e disfunções são de outra ordem, mais madura, se é que dá pra dizer isso. Hoje eu pago para mexer em questões mais de entranhas. Mas sei que hoje isso só é possível porque Tori, com seu Under the Pink, colocou-me no colo lá atrás e me embalou, dando forças pra continuar caminhando naquela estrada cheia de pedras – e eu me sentia descalça. Foi a força de que eu precisava naquele momento áspero. Mas também me empurrou. Era o que eu sentia quando ela subitamente gritava What’s it gonna take till my baby is alright.
E muitas vezes, quando já estava quase chegando em casa, eu sentia uma espécie de aviso com Yes, Anastasia e seus acordes fortes e vigorosos. We’ll see how brave you are... era um aviso pra mim. Eu imaginava Tori dizendo “quero só ver, hein”. Estava fora de cogitação decepcioná-la. E acho que não a decepcionei.
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Samanta Alcardo tem 30 anos, é casada e tradutora de inglês. Trabalha em um escritório de advocacia, embora não curta Direito. Adora amigos, música e cinema, porém odeia um monte de outras coisas também, tudo na mesma intensidade. Vive usando letras de música para expressar o que sente porque nem sempre consegue dizer.
4 comentários:
Muito bom, já ouvi este disco neste trajeto! rs
Acho que já ouvi toda SP, mas um lugar que ele fala mais alto comigo é no Parque da Água Branca. Esse álbum é mágico, obra prima da ruivinha.
Bom saber que tantas pessoas curtem Tori Amos, precisamos agitar um abaixo assinado ou um crowdfunding pra ela vir pra cá! Imagina ver Yes, Anastasia ao vivo!
A gente até tentou fazer isso uma vez, e o nome de Tori apareceu na lista do site mobsocial, mas não foi adiante. Como em 2014 ela deve sair em turnê, seria ÓTIMO tentarmos de novo!
E muito obrigado por ler o blog ;)
Demorou para ela vir pra cá tomar um solzinho! Vai curtir horrores o Brasil, certeza! Uma vez ela estava na lista pra escolha do Rock In Rio de 2001, de lá pra cá nunca mais vi nada... nem soube dessa tentativa de vcs, se houver outras, estou dentro!
Estou gostando muito do blog, descobri a uns 3 meses, parabéns! Pra falar a verdade sempre que vejo no meu e-mail msgs daqui do blog fico torcendo pela notícia "Tori Amos confirma tour pela América Latina"! rs
Tori amos é um gênio incompreendido!
Olha, o sonho da gente é exatamente esse, que ela possa vir pra cá! Vamos torcer, quem sabe em breve ;)
E muito obrigado por acompanhar o blog, ficamos muito felizes com o suporte de vocês!
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