Finalmente estamos concluindo a série Flavors, com um segundo texto sobre o álbum mais emblemático de Tori Amos, Little Earthquakes. Mas antes de introduzí-lo, gostaria de falar um pouco sobre a série em si e os toriphiles que fizeram parte dela.
Quando tive a ideia de organizar alguns textos retratando as emoções que cada disco de Amos transmite (após quebrar um pé e ficar ilhado em casa), não imaginava que conseguiria colaboradores com tanta facilidade e compromisso em fazer disso algo tão bom! Cada palavra escrita pelos fãs que aqui contribuíram é imbuída de sentimentos sinceros, devaneios geniais e até de fatos íntimos, que foram gentilmente abertos com o objetivo de homenagear a bela obra de nossa pianista. Por isso, a todos os que participaram da Flavors: muito obrigado por fazerem de um pequeno sonho meu algo tão especial. E por me salvarem do ócio também hehehehehe
Voltando à programação normal, rs, vamos ao texto de Amanda Guimarães (facebook) sobre o primeiro disco solo de Tori. Com palavras certeiras e trazendo à tona algumas das muitas metáforas matadoras que perfazem este álbum, Amanda tece um relato baseado especialmente em sua admiração à bravura de Amos em expor, nas palavras dela, "dores tão particulares". O mais interessante nisso tudo é perceber como coisas tão íntimas geraram uma identificação coletiva tão grande, o que nos mostra o quanto este álbum é, ao mesmo tempo, único e universal; sem espaço para que isso soe paradoxal. Com vocês, a catarse dos pequenos terremotos.
Little Earthquakes
A música, para mim, sempre esteve atrelada às coisas que aconteciam enquanto eu conheci determinado artista ou canção. Algumas vezes, bandas ou faixas isoladas ficam tão impregnadas de uma memória ruim que eu sequer consigo revisitá-las. Por mais que agradem aos meus ouvidos. Quando eu paro para pensar sobre isso, eu fico muito grata ao universo por ter me permitido conhecer Tori Amos pelas mãos de uma das minhas pessoas preferidas no mundo.
Eu e Tori fomos apresentadas num dia qualquer do ano de 2003. Num dia, provavelmente, tão sem graça quanto todos os outros que eu vivi na adolescência. Mas um dia que seria decisivo para que eu mudasse completamente a minha maneira de pensar. Essa mudança, porém, não aconteceu de forma brusca, mas antes veio do contato com esse álbum nos nove anos seguintes. Porque todas as vezes que escuto, eu me assusto com a coragem de Tori. Coragem de aparecer completamente desnuda na frente de uma multidão. De expor, sem maiores enfeites, dores tão particulares. E, especialmente, porque eu nunca havia conhecido alguém capaz de se colocar numa posição tão vulnerável e ainda assim parecer forte.
Deixando de lado todos os escudos, gosto tanto desse disco porque ele me explica. Me explica pelos rompantes de raiva. Por transformar um piano, algo tão clássico e contido, em rebeldia. Me explica porque demonstra que a gente adquire cicatrizes de tocar nos outros e que se essas feridas não se fecham do jeito certo, podem transformar em osso o espaço onde deveria se formar pele. E, principalmente, esse disco me faz achar que existe um lugar no mundo para esse tipo estranho de sensibilidade que eu tenho. Sensibilidade essa que me permite enxergar um álbum onde temas como as diversas faces da solidão são tratados, de um modo tão incisivo, como algo que, na verdade, quer ser uma celebração.
Little Earthquakes, na mesma medida, cura e faz sangrar.
É ambiguidade sensorial em forma musical.
Para cada explosão da guitarra, existe um solo de piano bem trabalhado. Para cada "tapa na cara", existe uma metáfora poética e bem construída. A cada sentimento negativo está atrelada uma imagem que denota recomeço ou possibilidades. É como se enquanto procura por um salvador debaixo de lençóis sujos ou tenta vocalizar aquilo que esteve preso em seu peito por muitos anos, Tori Amos quisesse nos mostrar o caminho feito por ela para que suas feridas cicatrizassem de um modo que ela não endurecesse. Tori soube deixar que elas se transformassem em pele e soube fazer com que a pele não se tornasse mais espessa do que o necessário para suportar golpes futuros.
E o que ela parece querer demonstrar é que deixar sangrar é necessário. É necessário para que a cura ocorra do modo como deve ocorrer.
Enquanto você não disser para todos aqueles garotos bonitos que eles não são Jesus Cristo só porque eles conseguiram te proporcionar um orgasmo, enquanto você não tiver visitado Barbados, enquanto você não cuspir em todas as pessoas que te apontam o dedo, você, simplesmente, não pode desistir. É preciso continuar lutando por todas essas coisas que, se comparadas com o que aconteceu de negativo, quase desaparecem. Assim, você estará quebrando o controle que todas as coisas ditas preciosas têm sobre você. Mas, acima de tudo, estará começando a encontrar uma maneira de desobstruir o movimento realizado pela dor enquanto tenta invadir seu corpo.
Acredito que aqui a escolha é entre ver uma luz no fim do túnel, mesmo em meio a tanta névoa, ou se entregar a completa descrença. E escolher a luz, por mais paradoxal que soe, é o menos óbvio. E o mais doloroso. É dizer que você ainda tem fé mesmo depois que te provaram que não se deve. É confiar quando você sabe que não se pode.
Tori indica um caminho possível para isso com esse disco. O caminho que funcionou para ela. E para mim. E tenho certeza que para tantas outras pessoas.
Little Earthaquakes foi a forma que Tori Amos encontrou para que as garotas perfeitas tirassem as garras do seu coração. Uma maneira de libertá-lo das velhas correntes. A sua maneira poética, sensível e explosiva de se rebelar contra tudo aquilo que oprime, seja no âmbito individual ou universal. E, portanto, Earthquakes passa longe de ser um disco triste. É uma celebração. Coisas ruins acontecem sim com pessoas boas, mas há nelas algo de transformador. Há algo de motivador de mudanças significativas. Há algo de reconhecível por todos os seres humanos. Há algo de catártico. E libertador.
“Give me life
Give me pain
Give myself again”.
(Segunda ou terceira versão. Escrito por Amanda Guimarães ao som de Precious Things em loop).
Amanda Guimarães é estudante de letras porque não manifestou nenhum talento musical ao longo da vida. Caso contrário exerceria qualquer função dentro de uma banda com muito prazer. Estuda literatura brasileira porque, num determinado ponto, pareceu uma idéia acertada, mas gosta mesmo é de literatura americana. Tem 24 anos (de insatisfação crônica), é muito mais canceriana do que gosta de admitir e finge que é uma pedra de gelo, mas chora com histórias de ONGs que cuidam de gatos de rua. Resumindo: Amanda Guimarães é uma fraude.
4 comentários:
muito bom, mas me lembrou muito em alguns trechos o resenha q o livro 1001 discos pra se ouvir antes de morrer fez do disco
Bettie :D
Eu lembro desse livro, e de ter lido a resenha do LE nele, mas faz tanto tempo que não consegui fazer o paralelo heheheheh
De qualquer forma, tenha certeza que a autora desse texto fez algo completamente próprio ;)
E mt obrigado por ler a série até o final ^^
Que texto maravilhoso! Fiquei desesperado para ouvir o cd!
Você não só escreveu muito bem como conseguiu, com metáforas muito interessantes, expor o que sente com o cd!
Parabéns, Amanda!
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