É um pouco difícil encontrar palavras para descrever o texto escrito por Lucas Vosch (facebook) para a série Flavors. Mas, de forma grosseira, trata-se de um mergulho no envolvente universo subaquático e de tons escuros que é o From The Choirgirl Hotel. Nele, somos apresentados ao mais fundo deste submundo, onde lamento, luxúria, revolta e reminiscências (até de coisas que não aconteceram) misturam-se num amalgáma indissolúvel e líquido. Líquidos. Diamantes líquidos. Aconselho a irem buscá-los nessas palavras.
Hotéis são lugares de inconstância, constante e inquieto fluxo de pessoas, dinheiro e interações humanas. Cada quarto guarda uma história em particular, mas por muito pouco tempo - as estruturas em concreto ficam, mas os hóspedes pagam sua estadia e partem.
Spark foi o primeiro quarto que visitei - um aposento de personalidade forte, encharcado, cheio de arestas oblíquas e muitas manchas de origem indecifrável. Saí sem sequer completar uma diária. Tori Amos (um nome que eu havia lido pela primeira vez muito antes de ouvir qualquer canção, e imaginado uma mulher esguia e indiana, de longos cabelos negros) era muito estranha, um aborto natural que ela deixa a entender ter desejado "sem querer"?
Mantive distância, desconfiado e muito chocado com essa primeira imagem. Mas depois de algumas outras portas abertas, me senti pronto e tentado a me hospedar novamente nesse hotel. Mas não era possível adentrar num passo - precisei de um mergulho.
O hotel era submarino, e identificar essa natureza me era essencial pra codificar e traduzir as histórias cantadas em cada quarto, todos submersos.
Spark era, na verdade, uma ameaça ao contrário, um ninar de lamento e arrependimento, um quarto de dúvida; não existia espaço pra gravidade terrena ali, bailarinas se equilibravam com barbatanas escondidas. Ainda escondia desconforto, mas com uma faísca de energia que eu suspeitava crescer em mim até o último metro quadrado.
O próximo quarto, Cruel, seguia as mesmas leis físicas, mas com refrações de luz diferentes - era uma espécie de festa, batidas insinuando sexo e um certo sadismo. A sinceridade não protegia quem ali estava dos tons de roxo e cinza, dessa dança frenética com o reconhecimento das próprias desvirtudes, afiadas e inevitáveis como a chuva. A faísca queimava mais ácida.
Pelas fechaduras de Black-Dove, um piano afogado insistia incansável, hipnotizador de cobras e de pessoas, se é que havia diferença. Esses aposentos eram contrastantes, sombras em soberania combatendo cantos que reluziam brancos e fortes. O amor pela vida e pelo oxigênio gritava, implorava por atenção, entre as algas que cresciam há décadas e já invadiam ameaçadoras seu chão, seus membros. O mesmo piano se despedia na hora certa, pingando.
Raspberry Swirl. Um quarto simples, lençóis limpos de qualquer estampa, água rubra envenenada por álcool que começa a fazer pequenos tornados, engolindo peixes e outras pequenas formas de vida. Defesas naturais de um organismo maior, talvez? O inebriante convidava, saudava, distraía habitantes do caos girante em volta, mas era uma euforia dependente do meu hálito, e cada quarto deve ter seu tempo. Deixei manchas de batom na minha saída.
Naquela suíte presidencial, o limo dominava os móveis acusando a grande passagem do tempo, mas um branco piano de cauda permanecia com uma leve e peculiar vibração no canto próximo à varanda. Jackie's Strength, a força residia na resistência contra o limo, a deterioração, era uma tradição que renascia com cada corda e cada pedal. A meia-luz era refletida nos porta-retratos, intactos e inúmeros, gerações conservadas pelas leves ondas oriundas daquele teclado que pulsava cardíaco.
Um pequeno corredor e uma escada me dirigiam ao bar, espaço de tamanho generoso, garrafas quebradas com seus conteúdos flutuantes envolviam todos os visitantes num abraço. Havia também fumaça submarina, resquícios de charutos e fragrâncias cerimoniais, e um grande holofote dirigido à área da banda. Iieee, cantava um eco fino de fantasmas em coro, quase imperceptíveis a olhos abertos. A faísca se dividia em desespero entre cada mesa, uma dissonância mórbida em cada taça: era um ritual em um templo interditado, e eu um invasor seduzido cegamente.
Me movi através da água e da curiosidade para o ambiente seguinte - a aparente redundância escandalosa de uma piscina submersa. Havia pouco pra observar, além de concreto frio e permanente. Mas eu estava sozinho, e a água era companhia, o fundo da piscina invisível. Nadei em direção ao fundo, e vi um brilho peculiar que não teria percebido de outra forma; eram jóias de oceanos estrangeiros que flutuavam impetuosas, uma fortuna mergulhada em uma piscina sem fim, brilhando em anil e esmeralda, me contando segredos de loucuras silenciadas e me oferecendo suas vozes. Eu era acolhido, e nunca havia sido tão provocado a permanecer no hotel, fugir da minha realidade terrena. Mas cedi ao açúcar visual e resolvi furtar uma jóia pra mim, jóia essa que me escorreu por entre os dedos, desperdiçando seu brilho. Era tudo miragem, água, Liquid Diamonds. Me apressei de volta à beira da piscina, estava mais consciente e meu objetivo novamente claro, a faísca sólida e interna.
Daquele momento, uma correnteza me levava a um quarto, terceiro andar, um caminho incendiado (mais propriedades físicas individuais). Fogo intangível, She's Your Cocaine, a figura flamejante desafiava meu controle e meus medos, com suas chamas acariciadoras dos móveis, ela parecia ter feições humanas, familiares. Era um quarto pequeno, mas expandido por espelhos nas paredes, que construíam um mosaico abrasivo com o fogo e me despiam de pele e pelos mortos. A água era um desafio a todos os elementos ali.
Northern Lad contradizia, era o elevador que sibilava o norte em suas engrenagens, mas me conduzia para baixo. A temperatura caía conforme os andares iam diminuindo de número, e as luzes passando ligeiras pela fresta entre as portas. As paredes pareciam comprimir o espaço proporcionalmente, sufocando; condições tão inóspitas naquele cubículo me lembravam tempestades contidas entre quatro paredes. E o sul não perdia velocidade. Minha persistência era suicida.
As portas se abriam, então, para o que seria o lobby de entrada do Hotel, mas sou recebido com explosões em meio a uma escuridão que só poderia pertencer a um reduto subterrâneo. Uma corrente de vento forte, fogos de artifício e mais nada: um saguão gigantesco sem formas ou objetos distinguíveis além das luzes abafadas pela água (contudo, nada intimidadas). Procurei silhuetas perdidas em meio ao caos, mas era inútil, os relâmpagos eram personalidades numerosas e suficientes para lotarem o lugar. Violência luminosa populava aquele nadir do pensamento, e a sensação de inevitabilidade era difícil sequer de entender, quanto mais superar - mas era um fenômeno necessário, pois a faísca continuava a evoluir. Não era ainda o momento de abandonar a minha estadia pela porta da frente. Pisquei para aliviar a aspereza aveludada que machucava meus olhos, e estava lá.
O quarto da mãe, de longe o mais aquecido de todos, transmitia uma segurança torta, lacrimejada. Sofás e camas, era quase totalmente almofadado, como um jardim ocluso. Era também o quarto emudecido, um silêncio de contemplação e lamento. O único som vinha do odor do momento perdido, e todos os momentos consequentes, abortados. Suspensas na água morna eu via pétalas da flor que teria sido, uma flor gêmea de todo o estofamento que tentava compensar. A faísca me olhou, com olhos amadurecidos, e voltou pro meu peito muito mais pesada. Playboy Mommy.
Minha saída foi oportuna, já podia e queria observar onde estava contido esse prédio de água e histórias, o aquário da imensidão de um oceano. Ali, passado e presente se dissolviam, tudo era respirado e inchava pulmões. Era impossível não sentir o fim da jornada nas minhas mãos enrugadas, nas ondulações que eu transmitia naturalmente e que se debruçavam sobre o vidro, voltando pra mim com uma intensidade distinta. Eu era o arquivo de tudo vivido ali, já era submarino, com minhas próprias barbatanas secretas. Na certeza dessa transmutação, e da transmutação da faísca - agora, uma concha madura e pertencente ao seu mundo -, suspirei pela última vez.
Algum desses infinitos quartos, desde então, eu habito arenoso, mineral debaixo da água.
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Lucas Vosch prefere o abstrato e o surreal ao palpável, o feminino ao masculino, o frio ao calor, e o brócolis à couve-flor.
(Blog Pessoal do Lucas: The Sea of Waking Dreams)
Um comentário:
Por conta desse post acabei de comprar esse disco no ML.
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