quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Gold Dust, por Lucas Tolotti

Dando continuidade às comemorações dos 50 anos de Tori, estamos publicando agora um conto escrito por Lucas Tolotti, toriphile que já havia colaborado conosco ao escrever um belo texto para o The Beekeeper. Dessa vez, fui pedido para ler seu conto, e por haver nele diversas referências a canções de Amos, achei uma boa ideia sugerir que fosse publicado aqui. Sem mais delongas, leiam a seguir sua intensa e melancólica narrativa.

Gold Dust

Ela desceu na estação errada. E sabia disso. Mas não tinha para onde ir. Não mais. Na saída para a rua, ao subir as escadas, viu um homem tocando violino. Aquela melodia não era estranha. Alguma sinfonia? Não, não soava clássica. Música de raiz? Talvez. Porém nem o som nem o instrumentista davam dicas de que lugar do mundo saíram essas notas.

Observando cada som meu.

O violinista era jovem, deveria ter trinta anos no máximo. Porém sua barba castanha aumentava a aparência madura e adulta, e os pés no chinelo de dedo, calejados e com unhas maltratadas, denunciavam uma vida não muito fácil. Pegou dinheiro da sua bolsa a tiracolo e gentilmente colocou a nota no chapéu de veludo invertido no chão, que funcionava como uma bolsa coletora.

Tenho que dizer alguma coisa, mas nada vem.

Finalmente subiu as escadas e foi abraçada por um dia quente. O céu azul deixava tudo mais difícil. Por que não poderia estar chovendo e nublado? Por que esse sol desdenhando de todas as emoções? Começou a ficar com dor de cabeça. Maldito tempo quente.

É minha nova aparência nesta estação.

Ao andar pelas ruas, atravessando sinaleiros e dobrando esquinas a esmo, ela foi se sentindo fraca. Não era uma fraqueza física. Já andara muito mais em outros dias, outros momentos. Com ele então, era capaz de andar por um dia inteiro, sem cessar. Mas ele não existia mais.

Você deve escolher um lado. Escolherá o medo ou o amor?

Quando estavam juntos, era como se tudo fizesse sentido e só aquilo seria o bastante para uma vida inteira. Distantes, ela se sentia angustiada. Não que ele parecesse se importar. Mas talvez o problema estivesse com ela. Não era sempre assim, afinal? Por que alguém sempre tem que perder?

Você só é popular com anorexia.

Ao sentir cair uma lágrima em sua mão, quase que instintivamente a limpou. Isso tudo não merecia mais uma lágrima. Não depois dos mil oceanos chorados. Ao olhar seu reflexo em um vidro de um carro estacionado junto ao meio-fio, sentiu repulsa pela sua própria imagem. Estava gorda. Cada vez mais magra.

Círculos e círculos, e círculos de novo.

Passando por uma ponte, viu dois lados da cidade. E ouviu os gritos do outro lado da montanha. Gritos que vinham de dentro dela. Gritos de reconhecimento, de autoconhecimento. E também de frustração. Lembrou-se do lado dele que ela não queria ver. Ao menos ter um lado ruim significava possuir um bom. Não era o caso dela.

Você pode ser um companheiro cruel.

Sentou num banco de uma praça, que só não estava deserta pela presença dela (afinal, ela era alguém na praça, não? Era ela alguém?) e de um mendigo (mais alguém que ela? Menos alguém que alguém?). Fixou seu olhar nele. E nas milhares de pombas ao redor. Tinha horror a pombas. Só estavam no mundo para serem transmissoras de toxoplasmose. Mas agora, que diferença fazia? Queria ter toxoplasmose, ao invés de tudo o que tinha. Sangue doente, corpo doente, alma doente.

Eles podem ver.

No banco, deitada embaixo de uma árvore, pensou em sair de lá apenas quando o sol, imprestável sol, desaparecesse. Fechou os olhos. Deixou a bolsa no chão. Pouco importava se a roubassem. Coisas materiais não tinham serventia. Seria pior se roubassem sua essência, seu futuro, sua vida. E isso já havia sido feito.

Garota, foi legal. Mas eu preciso navegar.

Ao acordar, com o sol se pondo, olhou para o chão e surpreendentemente sua bolsa estava lá. Ao abrir, reparou porém que só havia seu absorvente e um gloss. Suas sandálias também haviam sumido. E nenhum sinal de um paraquedas.

Essas coisas preciosas. Deixe-as sangrarem. Deixe-as lavarem.

Andando novamente sem rumo, deparou-se com outra estação de trem. Mais duas e estava em casa. Casa? Lar? Seu pai havia abandonado ela e sua mãe três anos atrás. Aparentemente, cocaína para se manter acordado nas longas noites de trabalho não foi uma boa ideia. Desde então sua mãe trouxe um sem-número de homens para casa. A maioria parecia preferir a filha, porém. E sua grande capacidade de manter a boca fechada. Ou aberta.

Parabéns, seu sangue em minhas mãos.

Em uma noite, ao fugir de sua casa, encontrou ele. Ele ofereceu ajuda. Admirou-se com sua bravura. Ela nunca achara alguém compreensivo assim. Nunca achara alguém. Era o começo de uma vida nova. Era o começo de sua morte. Engraçadas as coisas que você acha na chuva.

Nós trazemos ouro e mirra para ele.

Ela não se moveu desde que recebera a ligação. Ele estava morrendo. Morrendo e mentiu para ela esse tempo todo. Fora usada. Isso era crime. Mas o que fazer agora? Ele não deveria durar mais dois dias. Meses depois, a confirmação. Ele tinha deixado sua marca. E ela acertou. Ele não durou dois dias.

As coisas vão mudar muito rápido.

Sol escaldante durante o dia, frio cortante à noite. Algo a mais para cortá-la. Estava cansada das ruas, das avenidas, das luzes amarelas e vermelhas dos carros. Cansada dos barulhos, principalmente daqueles que vinham de dentro da sua cabeça, que corriam e a seguiam.

Eu estive aqui.

Seus pés estavam posicionados. De frente ou de costas? Como se despedir? Voltara à ponte. Ponte das cidades, das montanhas, do seu interior. Em algum lugar, alguém ri. Alguém chora. Alguém recebe uma notícia boa. Outros, menos afortunados, uma notícia ruim. E ela?
Ela pula.



xxx