Há poucas semanas, um artigo escrito sobre Tori Amos chamou tanta atenção que até a própria cantora o publicou em seu facebook. Escrito por Sady Doyle como desdobramento da apresentação de Taylor Swift, na última edição do Grammy Awards, procura explorar a influência (negligenciada) de Tori sobre o mundo da música e o mercado fonográfico, demonstrando o quanto nossa pianista acrescentou a esse universo. Viemos fazendo a tradução aos poucos, e aqui está. Esperamos que apreciem, e para ler o artigo original, é só clicar AQUI.
AONDE ESTARIA A MÚSICA SEM TORI AMOS?
Por Sady Doyle
Para uma certa gama de mulheres que cresceram nos anos 90, envolvida em tendências góticas e nerds, a apresentação de Taylor Swift nos Grammys de 2014, com a balada “All Too Well” do disco Red, foi uma experiência estranhamente chocante. Enquanto assistia à performance, bastante aclamada, eu sentia uma pitada de deja vu: o olhar penetrante direto à câmera; o lance de cabelo combinado com vislumbres laterais, casuais, mas com certa audácia; os jogos de “olhe-para-mim-não-olhe-para-mim“ que ela criava, inclinando delicadamente seu rosto para não presenciarmos um momento íntimo demais a intrusos, e se vertendo enfim em olhadelas sobre os ombros para as pessoas na plateia… Quando finalmente começou a fazer headbanging, compreendi o motivo da sensação estranha: Tori Amos. A performance de Swift que estava na boca de todos tratava-se na verdade de Taylor imitando Tori.
Mas não deveria me surpreender: para qualquer lugar que se olhe, existe gente pisando em território desbravado por Amos. Aquele piano de cauda em chamas tocado por Gaga nos AMAs de alguns anos atrás? É coisa de Tori (assim como pôr o instrumento numa armação transparente). Joanna Newsom gravando jams orquestrais com 9 minutos sobre mitologia convoluta e pessoal num instrumento clássico e arcaico? Ei, eu gostei de “Yes, Anastasia” também. A união de vocais belíssimos e cenários orquestrais intensos com dissonâncias quase desagradáveis na guitarra, trazida por St Vicent? Veja o “From The Choirgirl Hotel”.
A lista continua, e sua influência não está restrita às damas. Tente subtrair Tori Amos de Antony & The Johnsons, e você se surpreenderá com o tanto que se perde. Anos atrás, quando questionada de forma direta se sentia receber pouquíssimo crédito por influenciar a direção da música, Amos respondeu de forma resignada e amigável: “tudo o que sei é que hoje existem por aí muito mais pianistas do que em 1992”.
Nem todos os artistas listados acima são necessariamente fãs de Amos. Mas não precisam gostar dela para devê-la suas carreiras. Por produzir tantas mutações até então nunca ouvidas no mundo da música pop, ela efetivamente ensinou o público a ouvir desde os contos de fada estranhos e alternativos de Joanna Newsom, até as letras no estilo “tudo-menos-o-telefone-dele“ de Swift, antes mesmo das artistas surgirem.
Criar um caminho de tamanha amplitude, no entanto, exigiu que Amos assumisse uma quantidade assustadora de riscos pessoais e profissionais — o tipo de risco que uma artista disposta a manter uma fan base, além de uma aprovação consistente da crítica ou vendas no nível "Taylor Swift", raramente pode pagar. Assumir esses riscos resultou tanto em discos únicos e incríveis, como em outros muito fracos, e talvez essa disposição seja a razão pela qual, atualmente, se fale tão pouco de Tori. Quando falamos, normalmente é com escárnio: Sean O’Neal do A.V. Club, por exemplo, a define como uma “carta de tarô falante e ambulante”, ou uma “vara de incenso que canta”, finalmente tornando o adjetivo “Tori-Amos-y" um insulto pessoal; em última instância, soltava comentários como “eu a pegaria em 1995” e “ela é a heroína das Maiores Lésbicas Sebentas da Internet”.
Se é fácil apontar traços de Amos nos artistas que vieram depois dela, é bem difícil apontar o tipo de música que ela de fato faz. No início dos anos 90, sua abordagem crua e assuntos desconfortáveis — masturbação, menstruação, suicídio e abuso sexual — a marcaram como “rock alternativo”. Mas seus vocais honestos, melodramáticos e de ópera, a aproximavam mais de Whitney Houston do que Kim Gordon, e ela começou sua carreira completamente associada ao pop, submetendo canções para Cher, por exemplo. Tori tem claras influências próprias — Led Zeppelin, Joni Mitchell e Cocteau Twins. E enquanto Taylor Swift pode passar seus 20 anos fazendo imitações óbvias de Amos, é justo apontar que, em seus 20 anos, Tori também imitava outra artista, no caso Kate Bush — ainda que isso se desmanche um pouco através da estranheza lírica distintiva da primeira.
Seria possível delimitar Amos como uma compositora de baladas sentimentais e belas. Mas mesmo seu trabalho com sabor de “Celine Dion” tende a assumir estruturas esquisitas, passeando por diferentes gêneros abruptamente, ou pegando gancho numa estrutura convencional, mas com informações explícitas sobre a secura vaginal da narradora. Suas canções são desarrumadas por citações distorcidas: “Hey Jupiter” é interrompida no meio de uma crise pós-rompimento, recupera-se e desabrocha em algo parecido ao final de “Purple Rain”; “Spark” toma bastante de “Swing Low, Sweet Chariot” e a "amassa" numa mistura com mudanças de compasso e efeitos reluzentes com os pedais da guitarra. “Blood Roses” soa como uma composição de Bach para cravo, mas tocada por uma mulher que acabou de jogar suas roupas no quintal e tocou fogo nelas.
E então surge o material genuinamente esquisito: “Datura" é uma cântico falado sob um riff de piano tocado num compasso assimétrico e entalhado, o qual nenhum outro ser humano havia usado antes ou usou depois. É pontuada com um lamento vagaroso e partes em que o piano é distorcido por um amplificador de guitarra, isso tudo antes dela se transformar numa canção completamente diferente; soa enfim como a sensação de congelar vagarosamente no espaço até a morte, enquanto são captadas transmissões de rádio de um funeral para uma fada. Você sabe… Coisa de Tori.
Alguns tiros, no entanto, saíram pela culatra — The Beekeeper (2005) é tão brando e pouco elaborado quanto um vinho rosé da Franzia — mas isso tudo volta para o fato de que Tori Amos pode ser tanto maravilhosa como terrível. Ela sempre opera em modo tão arriscado que corre o risco de quebrar o ciclo, produzindo assim auto-complacências difíceis de escutar. Mas quando suas escolhas perigosas compensam, é singular e arrepiante: Boys For Pele (1996) é um álbum conceitual de 18 canções sobre viajar ao inferno para superar um rompimento, registrado em cravo, órgão harmonium e banda de metais. Pondo em papel, soa como um diário de sonhos de Tim Burton, mas de algum modo é fantástico, talvez seu melhor trabalho até então.
Quando homens denotam ter a ambição ousada e imprevisível de Amos, nós os chamamos de gênios. Pense em Jack White, ou em como Kid A de Radiohead soava muito estranho à época de seu lançamento, e ainda assim foi recebido com total entusiasmo. Olhe para fora da música também, como adoramos a experimentação formal e/ou a auto-complacência de David Foster Wallace, ou Charlie Kaufman, ou do criador de “Community”, Dan Harmon. Spike Jonze ganhou um Oscar por escrever sobre sua namorada imaginária! Para um homem, fazer coisas estranhas com assiduidade, trazendo à tona visões bizarras do âmago de seu tormento pessoal, é a prova de que ela é um Artista com “A" maiúsculo. Mas raramente mencionamos isso quando falamos (ou não) sobre Amos.
Eu odeio trazer o "por causa do patriarcado" aqui, mas não consigo imaginar outra razão pela qual tantas pessoas lutaram duramente para não se envolver com sua obra — ou porque eles se envolvem somente para taxar Amos como "trivial". Quando uma mulher clama pela liberdade de experimentar, necessária para se adentrar no território da genialidade — a liberdade para desprezar ou ostentar expectativas, indispor-se com meio mundo, falhar ou produzir material que acabe exigindo mais do que uma ou duas audições para que nele se penetre — ela está tomando para si um privilégio tradicionalmente masculino. Quando isso acontece, invés de admitirem que uma mulher pode lançar intencionalmente um trabalho pouco usual, por ter algumas ideias novas, a maioria de nós decide que ela está deixando coisas estranhas aparecerem, por acidente, assim esquecendo de aplaudir suas intenções reais.
Mesmo em seu apogeu, nos anos 90, a majoritária cobertura da imprensa tratava Amos como uma louca, invés de um talento. “Sem dúvida, as notícias reais sobre Tori Amos dizem ser ela uma peça genuína, banhada em platina, 100% feita de loucura”, dizia a primeira frase de um perfil antigo. Ela foi descrita como "Tori Amos, o esgotado prodígio infantil: a mulher que falaria mais sobre seu aborto numa entrevista de 15 minutos, via telefone, do que alguns amigos próximos lhe diriam num ano; a mesma que disse a um repórter da Rolling Stone, na cara dele, que se não acreditava em fadas, ele ‘não era diferente de Hitler, no que me diz respeito'."
Por sua vez, alguns de seus discos mais popularmente amados foram recebidos com chocante condescendência, e não só homens a repudiaram. Na Rolling Stone, Evelyn McDonnell gastou boa parte de sua resenha para o “Boys For Pele” atacando a personalidade de Amos (sua “guerra contra a religião” ou a “fala feminista molenga e New Age”), antes de finalmente chegar à música, o que leva a crer que a jornalista talvez nem tenha o escutado de fato. Sobre um álbum no qual a artista guincha ao falar de gargantas cortadas e canibalismo, como forma de expressar seu descontentamento sexual, devota canções a Satã e estricnina, e em certo ponto chega a instruir um homem a se matar, como se ela fosse Matthew McConaughey em “True Detective”, a conclusão da Rolling Stone foi: “parece que Amos não sabe como ficar enfurecida”. McDonnell pode ser uma dama, mas seu óbvio desconforto com a “fala feminista”, e a forma “high femme” pela qual a artista apresenta sua música, é precisamente o tipo de vício auto-depreciativo que mulheres são treinadas a dirigir umas às outras, para que garantam o status excepcional de “garota cool” dentro de uma cultura dominada por homens (como, digamos, a cultura da composição musical).
Por toda sua ambição, já se esperava que alguns críticos achariam "Boys for Pele" “misterioso”. Mas “Under the Pink”, disco de 1994, aquele com alguns de seus hits mais acessíveis e de apelo pop, recebeu o mesmo tratamento: Na Entertainment Weekly, Greg Sandow definiu que Amos fosse talvez “a artista mais irritantemente preciosa já nascida… Guinchando pelas regiões mais vertiginosas do espaço sideral”, antes de argumentar que ela possivelmente não está “focada em nada profundo o bastante para sustentar sua intensidade extenuante” (então, ela é intensa demais, mas não sabe como soar raivosa? OK!). Na sua resenha para “From The Choirgirl Hotel” (1998), um álbum techno/rock relativamente mais simples e direto, The A.V. Club soou felizmente surpreso por Amos não estar mais “sendo, bem, alvo de risadas” (será que The A.V. Club estava mesmo lendo as resenhas sobre a cantora?).
Sim, Tori Amos acredita em algumas coisas bem estranhas. Mas ela também crê em muitas outras, mais sensíveis: na maior parte do tempo, toda a conversa sobre fadas foi uma ornamentação para tratar de coisas como a opressão do fundamentalismo, a posição de vergonha delegada às mulheres e à comunidade LGBT por suas sexualidades, e o valor da honestidade emocional. Antes do Tumblr tornar o feminismo confessional e confrontativo um lugar comum, era ainda mais fácil usar isso como prova de que Amos era “louca".
Tori é também uma mulher que envelheceu sob o olhar público, enquanto mantinha a audácia de buscar a atenção midiática. Na sua autobiografia, Piece by Piece (2005), falou que seu primeiro selo, devido às contendas que tiveram, queria enterrá-la até estar “muito velha” para conseguir novamente um contrato. Por agora, às vezes pessoas referem-se a ela no passado.
A indústria musical de 2014 está cada vez mais dependente da descoberta de algoritmos e novos talentos. Num mundo em que garotas de 12 anos são postas em sessões com compositores adultos, com o intuito de lançarem carreiras pop descartáveis antes mesmo de chegarem a idade para dirigir, não há uma trilha bem cravada pela qual mulheres aos cinquenta possam passar, cantando sobre criar uma filha adolescente, ou tentar manter a integridade de um casamento de 16 anos. O melhor que podem esperar para si é o status de “Artista com Legado”, aceita pela importância de seus primeiros trabalhos; Stevie Nicks pode lançar quantos novos discos quiser, mas não importa o quanto a amemos, sempre iremos defini-la como a dama que cantou “Rhiannon”. Entretanto, todos os grandes nomes adolescentes e as de 20 e poucos anos irão (com esperança) alcançar os 50 algum dia. Muitas delas provavelmente irão querer lançar música, e ter seu trabalho tratado como atual e relevante. Se forem capazes de fazer isso, essa pode ser mais uma coisa que deverão a Tori Amos.
Porque ela continua trabalhando. Não desapareceu quietamente e esperou se tornar uma figura histórica; ela nunca parou de experimentar. No último outono, estreou um aclamado musical, The Light Princess, e ainda tem um álbum vindo em maio, do qual extrairá uma turnê. Eu comprarei esse álbum, pois sei que nele virá algo novo.
Por mais de duas décadas, Tori Amos foi uma inovadora implacável, abrindo o caminho para o Pop que soa como as paisagens oníricas, alienígenas e cheias de reverberações de Grimes, ou o Idler Wheel, disco cru e de tom "borderline" de Fiona Apple (Apple é provavelmente a artista mais facilmente comparável a Tori — elas partilham do mesmo instrumento, tem traumas similares e reputação de "mulher louca”, e até trabalharam com o mesmo baterista por vários anos — mas é também uma das quais Amos mais endossou com entusiasmo, por seus méritos próprios). Amos provou que a equação aparentemente básica de “garota + piano = balada” podia produzir material teatral e que mistura gêneros, como “Edge of Glory”, ou com a modesta intimidade de Natasha Khan, cantando para a lua. E às vezes, Joanna Newsom simplesmente virá numa roupa remetendo às feiras da Renascença, cantando sobre ursos derretendo e seus cruéis macacos suseranos e patriarcais por 10 minutos seguidos, e estará tudo bem também. Para praticamente qualquer um que sente num teclado — e, em particular, qualquer mulher que assuma a perigosa tarefa de vender sua vida interior à música — é difícil não pisar na sombra de Tori Amos.
Se há uma canção de Amos que espero que Taylor Swift ouça, essa é “Curtain Call”. Foi escrita depois que o segundo selo de Tori a largou, e lida com a ideia de ser a It girl de 20 anos atrás. A canção é sombria e decepcionada, um momento raro no qual Amos parece duvidar de si mesma. Mesmo quando luta para chegar à conclusão triunfante sobre a música ser sua própria recompensa — “Isso não tem a ver com negócios / É mais espiritual“, ela canta — pára logo em seguida, incapaz de comprar a ideia: “É isso mesmo?”, e então volta para um refrão sobre o quão duro ela trabalhou, e o tanto que realizou, e como todo mundo ainda lhe diz para desaparecer, de um jeito ou de outro.
XXX
Nenhum comentário:
Postar um comentário