Tori Amos não é cool. Mesmo agora, que nos encontramos no meio de uma onda nostálgica dos anos 90 – Pavement se reuniu, Weezer está começando uma turnê devotada inteiramente a seus dois primeiros álbuns, os jovens “descolados” estão todos indo aos shows de Courtney Love para ver o quão fora de controle ela fica (Por Deus, Juliana Hatfield e Evan Dando estão em turnê!) – o amor pelos álbuns de Tori Amos permanece soando como proibido e imbecil. Pessoas comumente confessam isso da mesma maneira que confessariam já terem jogado Dungeons and Dragons: timidamente, ou sorrindo afetadamente e encolhendo os ombros, em sinal de autoreprovação. Isto é inteiramente compreensível, pois mesmo quando ela estava em sua melhor fase, havia um estigma em torno dos fãs da pianista.Sady Doyle fundou o blog Tiger Beatdown, e já escreveu para revistas e blogs, incluindo “The American Prospect”, “Salon” e “The Atlantic Culture Channel”.
É a natureza deste estigma que interessa. Ainda que nossas lembranças dos anos 90 sejam enevoadas e seletivas, poderia argumentar que a popularidade de Amos estava conectada com alguns dos momentos culturais cruciais daquela década. A primeira imagem passada por ela – uma fugitiva do saturado Hair Metal, transformada numa séria cantora e compositora com o objetivo de recuperar sua integridade ferida – era perfeita para o início da década, à medida que as power-ballads se tornavam cansativas e a Geração MTV buscava por “autenticidade” na música. Seu ridicularizado sistema de crenças, com contornos “New Age” e ligado a um misticismo Pop-Jungiano de meados da década – lembre de livros como “Women Who Run With The Wolves” (Mulheres Que Correm Com Lobos), “The Celestine Prophecy”, o poeta Robert Bly, ou até mesmo o filme “Jovens Bruxas” - poderia eleger Amos, sempre desejosa de falar sobre a ajuda vinda das fadas, como uma representante de alto escalão. Já sua grande fanbase, receptiva ao mundo virtual desde muito cedo, esteve também atrelada ao final da década e ao advento da internet. Um fator em particular, porém, que se amalgamou à pessoa pública de Tori foi, coincidentemente ou não, a emergência da “terceira onda do Feminismo” (Third-Wave Feminism), e os conflitos em torno de gênero e sexualidade que caracterizaram o período de seu surgimento.
Apesar de sua sólida presença numa cultura de mudança, a pianista nunca foi considerada “cool”. E a razão para isso sempre tem sido a mesma: tanto sua pessoa pública como sua música tratavam de algumas das mais injuriadas formas de feminilidade. O verdadeiro problema em gostar de Tori Amos é justamente ser feminino demais.
Amos definiu sua música, desde o início da carreira, em torno de sentimentos advindos do ostracismo social, e da expressão de um mundo interior complexo e com barreiras para encontrar aceitação. Little Earthquakes, o álbum solo que definitivamente marcou o nome dela, transbordava subjetividade, sendo aparentemente nascido de confissões autobiográficas sobre rejeição, dúvidas sobre si e adolescência. “Cada dedo nesta sala está apontando para mim”: assim começa sua primeira canção; “Me And A Gun” , por sua vez, é um relato a capella do estupro sofrido pela própria cantora. Mesmo havendo uma grande chance de se tornar uma ode à autopiedade e vitimização, Little Earthquakes era também cheio de provocação, bem como assertivas que, sendo verdadeiras para si mesmo, eram sua própria recompensa. E então nascia a mensagem implícita da música per se: tudo isso me aconteceu, e eu ainda estou aqui.
As melodias e letras de Amos eram de uma beleza ímpar, expressivas emocionalmente e vulneráveis: em outras palavras, eram esteriotipadamente femininas. No entanto, não eram recatadas ou ingênuas, por estarem envoltas em raiva e tristeza, e tratarem de tabus: uma canção na qual uma garotinha conversa com um sincelo (Icicle) transformava-se rapidamente numa música sobre masturbação; outra que tratasse do tema “aborto” tinha versos que falavam de sereias. Amos não estava conectada à cena da música feminista como uma Riot Grrrl; não entrou em turnê com a Lilith Fair ou se apresentou no Michigan Womyn's Music Festival. Ao mesmo tempo, porém, seu estilo bombástico e impetuoso não poderia ser bem assimilado fora do feminismo.
No Rock, viu-se uma tendência a dois tipos de mulheres garantirem seu lugar no palco: “Garotas Duronas” (Tough Girls) e “Garotas Gentis” (Nice Girls). As Duronas – Polly Jean Harvey, Patti Smith – ganham respeito, ainda que sob má vontade, por se comportarem de maneiras honoráveis em homens: são confrontacionais, diretas, agressivas. Já as Gentis – Dusty Springfield, Sarah McLachlan – são admiradas por agirem com complacência e doçura, característica associadas à feminilidade. Naturalmente, esta é uma falsa dicotomia; ninguém é puramente amável ou puramente forte. Mas Tori, dolorosa e publicamente vulnerável, ao mesmo tempo questionadora, enquadrava-se melhor numa terceira e menos evidenciada categoria: a mulher histérica, em completa agonia. Assim foi Sinéad O'Connor antes dela, e assim seria Fiona Apple, posteriormente. Os fãs de Amos, porém, amaram a combinação de flagelo público e provocação; a história do Patinho Feio e magoado tornada em um Cisne Rock Star teve apelo entre as mulheres. Entre excluídos socialmente. Entre sobreviventes de violência sexual ou abuso. Chegou também aos LGBT, em especial jovens homens gays, os quais tinham razões particulares para se conectarem a temas recorrentes na carreira de Amos, como a repressão religiosa e o pudor sexual, e que ainda constituem grande parte de sua fanbase.
Referências ridículas aos fãs de Tori Amos começaram a brotar na imprensa tão logo eles passaram a existir. Um artigo de 1994 na revista New Musical Express (NME), do Reino Unido, os descrevia como um “grupo instável de jovens estranhos e de rosto pálido”, e Amos como a “mãe de uns mil desajeitados”. A palavra “obsessivo” começou a aparecer com frequência, assim como ocorreu com “culto”. No fim da década de 90, em tudo que se escrevia sobre Tori parecia haver a obrigação de se mencionar seus ouvintes “fanáticos”, e o fenômeno dos fãs logo eclipsou a discussão sobre a música. O cume foi a matéria de capa da Spin (ano: 1999), a qual descreveu pejorativamente o perfil de alguns fãs de Amos e afirmou que “não existe algo semelhante a um fã casual de Tori. Enquanto uns não dão atenção à música dela, classificando-a como pretensiosa e muito sentimental, outros cobrem o corpo inteiro com tatuagens da pianista”. Tori de fato tem apelo sobre muitos garotos e homens que queiram tê-la como sua “sonhada fada tarada” particular. Mas, com o passar do tempo, a narrativa fortemente baseada em questões de gênero, associada à figura de uma mulher excêntrica, obsessiva e hiper emocional acabou tomando controle de tudo. De fato, o artigo da Spin aponta que “Amos tem ressonância entre homens, também, ainda que eles virem motivo de piada por causa disso”.
Um exame aguçado de qualquer grupo de fãs tende a revelar colecionadores, imitadores e pessoas que destrinchem ao máximo o artista. Os fãs de Amos destacam-se em parte porque ela foi uma das primeiras artistas a receber um impulso substancial, em sua carreira, vindo da internet, além de utilizá-la como umas das principais ferramentas promocionais (“Sra Amos tem um grupo de seguidores tão vasto na web que ela lançará uma nova canção, 'Merman', somente no formato digital, como download”, citava uma frase de um antigo no The New York Times, que, antes de qualquer coisa, aponta para o fato de que 1998 era uma época realmente distinta de hoje). Foi muito cedo que os fãs dela adotaram uma incrível variedade de websites, listas de e-mail, e fóruns digitais, o que significava que uma pessoa de fora poderia verdadeiramente acompanhar o funcionamento de uma subcultura de fãs. Mas os de Tori destacaram-se também pelo que lhes causava obsessão, e o quanto estas obsessões incomodaram os outros.
Como sociedade, encorajamos garotas e mulheres a serem emocionalmente acessíveis, e em sintonia com suas emoções; dizemos serem características inerentemente femininas. Assim dizemos, e assim o é, até que elas demonstrem sentimentos que nos deixem desconfortáveis, visto que neste ponto as reclassificamos como harpias melodramáticas, banshees histéricas e “basket cases” (deve ser referência a um personagem de um filme de terror homônimo). O estereótipo, por exemplo, da boa e doce garota que pensa em arranjar um namorado como sendo a coisa mais importante da vida está lado a lado com estereótipo da chorona, patética e debulhada em lágrimas, que não conseguiu superar um rompimento; o que importa é como ela se sente sobre o garoto. Sem grandes surpresas, a garota que se sente melhor com ele tem menos chances de ser vista como inapropriada, ou exageradamente emocional, pelo público em geral.
Apesar de não ser escassa a quantidade de garotas que se identifica com as canções devido a problemas com garotos – eu mesma ainda considero Boys For Pele (1996) um dos melhores álbuns sobre rompimento amoroso já produzido – muitas delas sofrem por conflitos que são bem piores. No artigo da NME, o mesmo que descreve os fãs como “estranhos”, Amos estimava que “uma em cada três mulheres que vêm ao meu show (já foi) estuprada ou abusada sexualmente”. Seus números não advêm de um apanhado formal, mas estudos dessa natureza aparentemente os dão suporte: Deborah Finding, acadêmica na área de estudo de gênero da London School of Economics, pesquisou mais de 2000 fãs de Amos para sua tese de PhD (2009), e descobriu que a taxa de abuso sexual entre elas era “suficiente para suportar a estatística de que uma em quatro mulheres já sofreu violência sexual”, e que “98% das que responderam disseram ter usado a música dela como um instrumento de apoio emocional”.
Existem poucas coisas mais intencionais para desestabilizar uma cultura patriarcal que um grupo de mulheres, unindo-se para discutir os efeitos da violência sexual em suas vidas. Uma delas é quando homens se juntam para conversar sobre como é ser violado ou abusado sexualmente, discussões estas que também ocorrem em shows de Tori. De fato, uma das ideias que acaba tornando para muitos os fãs de Tori “menores” é que, se não são garotas, são vistos como “excessivamente” femininos. Os fãs do sexo masculino podem ou não ser efeminados, podem ou não ser homens gays ou bissexuais, podem ou não serem sobreviventes a alguma violação ou abuso. Mas é difícil subestimar o papel que homofobia e o controle quanto ao gênero tiveram na vida dos fãs da pianista. Considere a risadagem e surpresa generalizadas quando o lutador profissional Mick Foley anunciou recentemente que é fã de longa data da música de Amos. Num artigo para a Slate, adaptado de sua autobiografia, Foley recorda do abraço que deu em Amos como “se fosse uma criança inocente nos braços de um anjo”. A frase foi vastamente disseminada na blogosfera, acompanhada de fotos do corpulento lutador sublinhando a dissonância cognitiva de um homem viril, por assim dizer, curtindo um trabalho de caráter tão feminino.
Mesmo a experiência propiciada pela música de Amos, de algum modo, é considerada esteriotipadamente feminina. Ir a um show dela tinha uma grande objetivo: buscar catarse. Suas performances ficaram conhecidas por serem imprevisíveis e fortemente expressivas. Sempre houve muitas lágrimas, gritos, e às vezes ambos vinham do palco. A um certo nível, a paixão em torno de Amos era inquietante porque suas apresentações pediam à audiência para perder o controle, e permitir a si próprio experimentar emoções fortes e por vezes assustadoras, deixando o reino do pensamento racional para trás e fazendo conexões intuitivas entre as palavras, os barulhos e a completa expressão física da mulher no palco, que poderia estar se moendo de um jeito orgásmico contra o banco do seu piano, ou ainda arranhando a si mesma ferozmente. Certamente, isso deixou algumas pessoas desconfortáveis; era tudo sobre deixar zonas de conforto para trás, perder as inibições. Se você não gostasse de coisas desse tipo, seria ainda mais difícil imaginar que alguém gostaria. A pós-estruturalista Hélène Cixous, uma estudiosa do feminismo, apontou que a duplicidade de gênero tendia a se perpetuar em outras divisões, como “Cabeça/Coração”, “Inteligível/Palpável”, e “Logos/Pathos”. A música de Tori Amos pede a seus fãs que fiquem do lado errado, o lado feminino, de todas essas dicotomias.
Então, Tori Amos pôde abarcar garotas, abarcar gays, abarcar vários inconformistas sobre questões de gênero, e todas e todos foram aconselhados a refletir sobre seus sentimentos com seriedade, sobrevivendo e permanecendo sozinhos de pé. Sem dúvida, isso não está na moda. Mas vendeu, e continua a vender: todos os sete primeiros álbuns de Tori (com exceção do disco de covers, Strange Little Girls) tornaram-se de ouro, e os dois primeiros, Little Earthquakes e Under The Pink, alcançaram a marca de multiplatina. Amos ainda sai em turnê ao menos uma vez a cada dois anos, e continua encontrando com os fãs para receber pedidos e ouvir suas histórias, pouco antes de quase todos os shows. A obra perdura; os fãs permanecem.
E a obra perdura porque Amos – que não é indie, não é mainstream, nem uma Riot Grrrl ou uma garota gentil – ocupa um lugar praticamente único na cultura. “Seja você mesmo” sempre foi a mensagem de seu trabalho, e tem sido assim nestes quase 20 anos. Não, Tori Amos não é cool. Mas para as pessoas que amam seu trabalho, ela é insubstituível, inspirando e dando força à resistência de cada um deles. Independente de quão longe um legado pode ir, esse parece ser um digno de se invejar.
Veja o artigo em inglês AQUI.
Tradução por Hernando Neto
(veja mais aqui: http://toribr.blogspot.com/p/traducoes.html)
6 comentários:
meu deus do céu, que maravilhosa essa matéria!
ótima mesmo!!!
Esta matéria foi incrível, muito boa mesmo. Sou apaixonada por Tori e raramente encontro textos em português.
Texto emocionante! Como sempre digo, Tori é a Rainha dos meus sentimentos mais íntimos e profundos!
Esse texto é tão pereito e emocionante que eu também senti a necessidade de deixar um comentário com 2 anos de atraso (visto que ele é de 2011).
A questão do que é definido como feminino e, por tabela, de tudo aquilo que é associado ao feminino é o ponto-chave desse belo texto. O grande mal da cultura, que é governada pelo patriarcado e pelo machismo, é justamente essa necessidade de antagonizar o masculino e o feminino como se fossem dois elementos que jamais devem se misturar. O feminino é visto como um traço inferior, fraco, neurótico, desprovido de objetividade e governado de forma excessiva pela emoção. Ou seja, tudo aquilo que se opõe ao arquétipo do macho viril, guerreiro e líder.
Um homem sensível ou um homem homossexual é visto com desprezo pela sociedade justamente por ser "feminino" (inferior), cometendo também o sacrilégio de provar de ambas as fontes do masculino e feminino (e elas não se mnisturam, lembram?).
De acordo com essa cultura não existe um "meio macho". Ou se preenchem todos os requisitos do ser forte, inabalável e viril ou se é automaticamente caracterizado como efeminado, e portanto, fraco e inferior.
Uma colocação brilhante do texto é ressaltar que Tori nos convoca a continuar lutando "do lado errado da força". Ou melhor dizendo: nós - defensores de tudo aquilo que foi relegado ao feminino - realmente estamos do lado que vem sofrendo muitas baixas nessa guerra, mas isso não significa que estamos do lado errado. Ás vezes o inimigo é forte demais e parece insuperável, mas qualquer pessoa com um senso mínimo de conhecimento da história da humanidade sabe bem que tudo o que as minorias e os oprimidos em geral necessitam é de tempo e perseverança. Antes a única função das mulheres era servir aos homens e dar continuidade à espécie pela procriação. Há pouco mais de um século, os negros eram e escravos e hoje possuem cargos de poder (hello, Barack Obama!). A comunidade LGBT, antes marginalizada em todos os sentidos, aos poucos vem conquistando sua cidadania plena. Ainda há muito pelo que lutar, mas o mundo muda SIM.
Maravilhosas colocações, Angelo <3
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