No caminho para casa, estava ouvindo Amber Waves e tive a inspiração para esse texto. The Northern Lights are waving...
Tori Amos sempre se define como uma contadora de histórias, aspecto que se tornou mais evidente na última década, à medida que seus discos ficaram menos “pessoais” e mais conceituais. No entanto, mesmo quando escrevia sob sua perspectiva, Amos demonstrava uma tendência a construir narrativas de natureza diversa, indo desde contos íntimos até epopeias às vezes num único disco. E o aspecto mais interessante dessa abordagem são as suas personagens (e personas). A pianista é apaixonada por gente, humana e não-humana, até quando essa gente lhe deixa a ponto de enlouquecer — por isso a escreve em canções.
Dentre as pessoas que clamam pela atenção de Amos, é fato que suas escolhas são bem “incomuns”, palavra aqui aplicada com gentil eufemismo. Tori escreve sobre personagens marginalizadas, ulceradas e que muitas vezes não tem como gritar por socorro. Suas palavras são por vezes escritas em honra a esse povo mutilado, de quem se extraiu a última gota de dignidade; dessa forma, visita a existência de mitos, figuras históricas e até de pessoas ditas comuns, com quem se convive no dia-a-dia. Nunca se sabe o que se passa ao lado, ou o que de fato aconteceu há milênios atrás, e o que quer a trovadora de cabelos vermelhos? Resgatar a segunda versão, dar voz à escória, permitir que cada uma das pessoas relegadas à escuridão tenha chance de conhecer o sol… Tori escreve com fome de justiça.
Não à toa uma de suas paixões íntimas é Maria Madalena, especialmente pelo que ela representa em contraponto a Jesus, o homem e o Messias. Desde o começo dos anos 90, Tori cantava sobre como essa Maria tinha sido atacada e tripudiada, ainda que já visse chegando a hora das pessoas reconhecerem que aquela mulher, pagã e voluptuosa, era mais do que uma simples seguidora do Cristo (Mary). Amos usou a metáfora da Madalena como o exemplo perfeito da incisão íntima dada a cada mulher do mundo, e assim o fez para reclamar a si o direito de não ser apenas santa ou profana: ela deseja, sim, deseja ser completa. Mesmo quando Madalena não se fazia presente em suas músicas, sua mote era corrente em face de outras figuras que visitaram a obra de Tori. A moça abusada na infância pelo pai, e que durante a vida adulta ainda lidava com cada um de seus traumas (Bells For Her, Carbon); as meninas africanas sendo obrigadas a passar por mutilação genital, realizada por suas próprias familiares (Cornflake Girl); ou a estrela pornô, ludibriada e escravizada por um negócio que só a deteriorava mais e mais (Amber Waves); cada uma delas era defendida pela pianista como sua irmã, como a pessoa que os outros nunca lhe deram a chance de ser.
Mas não somente de mulheres Tori embebe seus contos-canções. Algumas figuras masculinas bem espinhosas precisavam ser revisitadas por alguém, e como temas difíceis nunca foram motivo de fuga para ela, lá estava escrevendo sobre Deus, Lúcifer, Jesus, alguns outros tipos messiânicos e até seu marido, como não? Os caminhos que Amos escolhe para falar sobre esses homens costumam tomar contornos pouco casuais, a exemplo de representar o Príncipe das Trevas como uma de suas canções mais charmosas (Father Lucifer), e Deus ser mais um desses garotos birrentos e egocêntricos, que há aos montes por aí (God). Mais uma vez, ela tentava mostrar o outro lado das lendas, trazendo por meio disso uma nova consciência sobre a complexidade de nossa existência, e buscando extinguir ideias maniqueístas de que somos bons ou maus — somos Yin e Yang, temos dever de ser.
Há de se ressaltar, no entanto, a maneira como Tori escreve pelo seu marido. Não é foco desse texto entrar em detalhes íntimos dos dois, mas uma canção em particular retrata-o com uma doçura sem igual: Invisible Boy. Amos disse que a música é dedicada a um homem de vida interna extremamente densa, mas que prefere tornar-se invisível somente para não ter de se explicar demais. É como se descrevesse as angústias e fragilidades que às vezes ele deixa escapar, fazendo delas uma ponte para alcançá-lo e mostrá-lo o quanto tudo isso importa. E mesmo que todos sejamos feitos de barro, ele não se resumiria a isso, por ser o melhor garoto invisível para ela. É um momento de trégua, em que as partes encontram um caminho comum e existe compaixão. Empatia e compaixão.
Tori vem de uma linhagem de mulheres compositoras e escritoras que buscavam se afirmar diante do mundo, demarcando o lugar que nele ocupam e, se necessário, usando um pouco de violência para tal. No entanto, desde cedo aprendeu que ocupar um espaço nessa terra jamais seria uma experiência solitária, o que parece tê-la motivado a encarar o rosto das pessoas de frente e sem medo. Em certos momentos, relatar aquilo que viveu ou conheceu parecia ter vindo somente de sua ânsia por sobreviver. No entanto, mesmo nas horas mais escuras, o que ela fazia era passar sua tocha adiante, uma chama inflamada a cada nova pessoa cantada, em cada nova história contada. Assim a trovadora constrói seu legado e passa sua missão.
Por Hernando Neto
2 comentários:
Que lindo, Hernando!Somos todxs um pedacinho (ou muitos pedaços) daquilo que Tori escreve.
Obrigado pelo comentário, amigo :D
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