sábado, 3 de novembro de 2012

Flavors: Strange Little Girls

A visão feminina de Tori sobre canções masculinas deu origem ao Strange Little Girls. Não chega a ser um álbum feminista - Tori apenas mudou o foco de algumas letras, dando um novo sentido e nos fazendo refletir sobre outras perspectivas das canções. A dualidade do álbum se faz presente neste bonito, porém tenso, texto do Hernando, apresentando uma história de uma estranha garotinha sob a visão de um homem.

- Mariela Simão
(que escreveu sobre o Pele)


Strange Little Girl

Foi um abuso.
E outro.
E uma sequência de abusos que me tomaram anos de alegria e me deram séculos de uma insatisfação sem nome. Me sentia uma flor pisoteada toda vez que começava, e era como se a cada investida, cada movimento doente meu corpo friccionasse até quase explodir - e hoje não tenho vontade de sentir. Nem prazer, nem desgosto, nem lamento. Só às vezes que sinto raiva. Uma raiva gelada, daquela que congela a espinha quando mira direto em olhos desatentos.

Mas não foi nada pessoal, você parece ser uma pessoa boa, não merece minha raiva.

Eu sofri abuso sexual dos meus oito até os 11 anos. Meu pai, ele me tocava. Nas primeiras vezes, eu não o entendia muito bem. Até hoje, eu não o entendo bem - mas ele me feria. Ele me tocava com tanto carinho, mas eu não queria aquilo, era excruciante só imaginar que ele viria e começaria a me “bulinar”. “Pais não podem, não devem tocar suas filhas assim”, era sempre o que vinha na cabeça a cada investida daquele satã. Não tive nem chance de conhecer Deus direito, e estava ali, dançando com um demônio.

A voz dele me doía, ouvi-lo me chamar de “filhinha”, nossa, “filhinha do papai”, me cortava como uma agulha atravessando meu coração e varando minhas costas. Era uma dor pontiaguda, furava minha alma e deixava ela assim, vazia. Ficava a ponto de enlouquecer quando ele dizia, “te amo, filhinha” - AQUELE IDIOTA NÃO AMAVA NINGUÉM, COMO ELE SE DAVA AO DIREITO DE DIZER QUE ME AMAVA?! -

Pois NÃO, não me amava, ele me ensinou o que é o desamor. E isso é pior até do que sentir ódio por alguém.
Eu não o amo. E não me amo, também.

Tudo acabou quando finalmente minha mãe chegou em casa mais cedo e viu o que o marido dela fazia com sua filhinha. Ela partiu pra cima dele e começaram uma briga corporal - depois disso, eu vi seu corpo voando para a sala. Sim, meu pai matou minha mãe, traumatismo craniano, sangue pela casa, o chão da sala vermelho escuro. Vizinhos decidiram chamar a polícia depois de ouvir meu choro e os barulhos da briga, e foi aí que ele foi preso, pelo homicídio. Minha avó materna, outra coitada, ficou com minha guarda, mas com 18 anos eu saí da cidadezinha onde ela morava e decidi tentar a vida fazendo faculdade numa cidade maior - pensava que aqui as pessoas poderiam me dar algo que desde meus oito anos eu nunca mais tive: paz.

Uma paz fria, distanciada, era o que eu mais queria.

Mesmo mantendo a distância, fui obrigada a me envolver com pessoas na faculdade, e acabei conhecendo algumas poucas. Uma delas foi a Paula, adorava o jeito calado dela. “Enjoy the silence”, ela costumava dizer. Muitas vezes só sentávamos e ficávamos ouvindo música no mp3, ela gostava muito de Velvet Underground. Paula não percebia, mas toda vez que chegava no verso, “it’s the beginning of the new age”, seus olhos faiscavam! Sim, o que mais me chamava atenção nela era o quanto seu silêncio escondia, e o quanto seus olhos revelavam... Eu tinha vontade de arrancar aqueles olhos para mim, e trocá-los pelos meus - mas isso não resolveria nada, então só observava.

Paula era filha de Judith, uma mulher que a teve muito cedo, aos 17 anos. Quando as conheci, dona Judith já havia se casado com outro homem, não o pai de Paula, mas estava enfrentando um divórcio - eles haviam perdido o filho caçula da família, e ela entrou em depressão, num fosso fundo o bastante para não ouvir nem os chamados da filha - tudo bem que Paula sempre falava baixo, mas ela não respondia nem a sua própria cria?! Imagine o marido... Ele não aguentou aquela situação e voltou pra cidade onde seus pais moravam. Dona Judith pareceu não ter se importado tanto, o amor já a desapontara o suficiente.

Eu e Paula ficamos mais próximas conversando sobre nossos problemas, mas não era nada verborrágico - quando uma chorava, a outra segurava sua mão e só. Eu às vezes punha Heart of Gold, versão do Johnny Cash, para tocar, e assim éramos duas irmãs, duas irmãs sob o mesmo cobertor inútil pro frio. E a gente sorria com certo desdém ao ouvir Cash cantando, “And I’m gettin’ old” - éramos duas velhas cansadas, tínhamos pra onde envelhecer?

Daí, numa segunda qualquer, quando acordava para ir a faculdade, recebo uma ligação que me fez voltar para a cama, mas sem um pingo de sono: Dona Judith havia se suicidado. Paula pedia por mim, mas demorei a sair: eu lembrei de minha mãe, do corpo gelado dela, das flores mais feias desse mundo sobre o caixão, e toda aquela desgraça fez com que vomitasse qualquer coisa que não tinha no estômago - sentia um puxão eterno em minha barriga, mas precisava ir ao encontro de Paula. E ela estava diferente quando a encontrei. Eu não sei te dizer se era pra melhor ou pra pior, ela estava apenas diferente. Peguei as coisas dela em casa e fomos juntas ao velório de sua mãe - preferi não ficar perto do caixão (“outra vez não”, eu pensava), mas ela ficou. E chorou. Chorou beijando a testa da mãe, chorou dizendo o nome de seu irmão, chorou debruçada sobre o que restara de sua mãe, entre velas e as mesmas flores feias. Chorou até o último momento, quando já não se via o caixão dentro da cova.

Fomos pra casa, e ela me disse: “eu sempre odiei as segundas-feiras, sempre”. Dormimos juntas, e de manhã, fiz café preto pra ver se acordávamos de mais um pesadelo ruim. Outro pesadelo ruim. E o dia foi chuvoso. A semana, também.

“Não parece que a chuva tá batendo palmas, quando ela cai sobre a janela?” - “Batendo palmas pra nossa tragédia grega, só se for”. O primeiro sorriso, em dias.

Passaram alguns meses e Paula foi desabrochando, a cada dia. “Sorte minha ela não me esquecer”, pensava eu, mas de fato, ela começou a ir em festas e me arrastava pra todas elas. Foi numa dessas festas que conheceu o Jonas, e ele foi muito cortês com ela, desde o começo. Levava em casa, trazia flores, bombom e todas essas coisas: acabou tirando a virgindade dela. Paula começou a falar de coisas que me incomodavam, mas vê-la bem me deixava feliz... E fomos assim, eu continuava sendo a irmã dela, e ele meu cunhado. Sentia algo de novo surgindo, algo que depois de tanto tempo me soava surpreendente. “É uma família”, Paula dizia.

Depois de dois anos juntos, eles decidiram se casar. Jonas havia se acomodado um pouco, e agora estava sempre se excedendo em seus ciúmes. Mesmo nessas condições, ela me garantiu que estava tranquila com os rompantes de raiva dele, que ela já havia se acostumado. Não gostava disso, Paula sabia, mas àquela altura não poderia impedir nada. Se casaram. Voltaram da lua de mel. E foram felizes para sempre.

Até a primeira agressão.
E a segunda.
E uma sequência de agressões, primeiro verbais, depois físicas, todas motivadas por um ciúme e uma obsessão que literalmente a prendiam em casa. Paula ficava mais e mais frágil e a cada dia que se passava, via a flor desabrochada apodrecer. Sugeri então que fugíssemos juntas, que nós éramos irmãs e eu não podia deixá-la nas mãos daquele canalha, mas ela relutava em sair de casa, amava Jonas e estava esperando o primeiro filho deles, “não, eu vou ficar aqui!”.

Fomos perdendo contato, mas minha angústia não cessava.

Até o dia em que Paula finalmente acordou para si, ainda grávida e agora temendo pelo filho, e disse a Jonas que iria embora. Segundo os vizinhos, ele a acusou aos gritos de estar com outro, e depois de espancá-la tortuosamente, saiu de casa. Ela foi socorrida.

Mas morreu.
E é por isso que eu estou aqui.

Fui atrás de Jonas com uma arma e disparei o cartucho inteiro contra ele. Eu lembro com orgulho das palavras que usei:

“Você acha que isso foi ser um homem de verdade? Você acha que tratar sua mulher como um objeto que lhe pertencia foi agir como um homem de verdade, seu demônio?! Pois bem, se isso é ser um homem de verdade pra você, EU vou ser uma mulher de verdade agora!”

E o sangue jorrou. As gotas caíam, como chuva, e eu gargalhava de como aquela cena era vermelha, uma volúpia! Foi libertador lembrar dos olhos de Paula, pois ali eu sabia que eles faiscavam como nunca. Que Deus a tenha.

- Bem... Sua história... Qual é seu nome completo? O escrivão precisa registrá-lo na confissão.

Minha mãe às vezes dizia a meu pai: “Nossa garotinha anda muito calada, estranha, João” - Garotinha Estranha. Pode registrar.



nota: naturalmente, esse texto não tem por objetivo instigar a violência, mas retratar realidades cruéis que ainda acontecem dia após dia, relacionadas de alguma forma com as canções do SLG. Se você se identifica com alguma destas situações de abuso, a solução é procurar ajuda, seja em amigos, seja na justiça. E criar. Como Tori sempre fez, criar a partir da destruição e desordem.







Hernando Siqueira Neto, 25 anos. Uma pessoa que aproveita bastante seu ócio criativo e sua suposta solidão. E que vive pensando em Marianne.

2 comentários:

bettie disse...

genteee, q texto perfeito kkkkk amei, esse junto com o do AATS são meus preferidos agora, amei as referencias as músicas "escondidas" no texto, amei, amei, amei

Hernando Neto disse...

Obrigado por sempre lê-los, Bettie :D