O sempre admirável Toriphoria/Yessaid publicou há alguns meses materiais de divulgação para imprensa do Boys For Pele, de 1996. Como foram compartilhados no facebook do ToriBr, achei interessante deixá-los registrados também no blog.
O primeiro material é o EPK (Electronic Press Kit) do disco, ferramenta visual de apresentação do novo trabalho, mas numa versão estendida. O último é a Bio Press do Pele, enviado para membros da imprensa à época de seu lançamento. Para acessar o link de origem destes, clique AQUI.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2016
sexta-feira, 22 de janeiro de 2016
[Tradução] Boys For Pele: 20 Anos de Fogo
Olá, toriphiles!
Como já devem saber, "Boys For Pele", um dos trabalhos mais marcantes de Tori, completa hoje 20 anos de lançamento. Muitas foram as homenagens feitas por páginas musicais, e uma delas me chamou atenção a ponto de querer traduzi-la para o blog. Foi escrita para o site PopMatters, e você pode lê-la na íntegra a seguir (para acessar a original, clique AQUI).
Uma outra ótima notícia é que Tori relançará o disco numa versão deluxe, à semelhança do que fez para o Little Earthquakes e Under The Pink, e mais detalhes deverão ser divulgados em breve. Por fim, como não podemos esquecer: parabéns, "Pele", e obrigado pela companhia tão necessária por todos esses anos. Sua chama é viva!
"BOYS FOR PELE": 20 ANOS DE FOGO
Por Chris Gerard
Sentada na varanda de uma choupana enquanto malignamente aprecia a vista, a perna sobre um dos braços da cadeira de balanço, apoiando um rifle com um quê de naturalidade. Sua expressão deixa clara a disposição em usar a arma contra qualquer um que ouse se meter com ela. Estava por aí, vagabundeando pelo pântano, lama espalhadas nas pernas e nos pés. Uma cobra circula um dos trilhos da cadeira, e um galo morto está pendurado de cabeça para baixo a seu lado. Há magia negra em curso, aqui. Esta dama conhece o vodu com a palma da mão. Um homem esperto daria meia volta, correndo a todo fôlego na direção oposta. Um mulher esperta talvez fizesse o mesmo.
Afinal, quem sabe do que Tori Amos é capaz?
São 20 anos desde que Tori Amos derrubou o açoite no chão e pôs fogo em seu piano, disposta (e possivelmente ansiosa) a sacrificar qualquer um que a desprezasse, nas chamas eternas de Pele. 20 anos desde que ergueu seu coração ainda sangrando depois de arrancá-lo a seco do peito, para que o mundo o examinasse. 20 anos desde que atravessou o labirinto do naufrágio emocional causado por ver aquilo que lhe parecia eterno ser destruído. “Boys For Pele” ainda queima com a mesma intensidade de quando foi revelado — as terminações nervosas expostas, a instabilidade emocional ainda viva. A raiva fervilhante e a promessa de retaliação dá vez a uma vulnerabilidade trêmula. Há bastante autoconfiança, ainda que a dor e a ferida borbulhem à superfície com facilidade também. Parte dele não faz qualquer sentido num modo literal, mas procura evocar sentimentos e pensamentos por meio de uma palavra, um som, ou de uma imagem em flash. “Boys For Pele” é uma jornada, munida dos impulsos humanos mais elementais. É uma catarse, severa e bela, estranha e penosa, contraditória, mas sempre autêntica.
Começamos de um momento bem degradante. Pulsos pálidos de piano nos envolvem em “Beauty Queen”, a voz de Tori torpe pelo entendimento de que a beleza é só uma fachada. A beleza não lhe leva muito longe. Não é uma armadura eficiente. Facas conseguem atravessa-la. Deste alicerce parte “Horses”, gravada com a canção anterior numa única tomada, Amos tocando seu Bösendorfer amparada por um gabinete Leslie num cemitério ventoso da Irlanda. Os cavalos voltaram de “Winter” e estão aptos para o passeio.
As coisas se tornam obscuras rapidamente. “Blood Roses” deixa bem claro o que incentivou a jornada. A emoção humana é algo poderoso. O cravo estridente soa como lâminas cirúrgicas. O piano era suave demais para esta acusação lancinante sobre um homem que não soube cuidar dela. As imagens são bem claras: “Depilei cada lugar onde você esteve, garoto / Depilei cada lugar onde você esteve”. Ela transborda em desgosto por ter sido usada, ao perceber que “às vezes você não passa de carne”. Assim como em boa parte do álbum, a voz de Tori vai da beleza intensa à selvageria e dissonância. Ela não tem pudores em mostrar como a dor deixa tudo mais feio. “Blood Roses” é uma ferida viva, aberta, com o vermelho borbulhando das teclas do cravo, enquanto sinos de igreja fantasmagóricos soam à distância.
Amos invoca o diabo em “Father Lucifer”, um rodopio gracioso da escuridão, uma paquera com o outro lado. Quando o desespero assume o controle você chega a seu extremo. Talvez seja nele que “Professional Widow” está circunscrita. Finalmente surge a bateria e uma vibe rock and roll feroz ganha espaço pela primeira vez. Amos conduz o piano e o cravo como uma leoa furiosa, totalmente desvairada. As figuras são confrontacionais e provocativas, e a música se encaminha a um climax frenético como um tornado, arrastando mais e mais entulhos até finalmente relaxar à semelhança de uma torrente de veneno expulsa de suas veias: “dê-me paz, amor / paz, amor / dê-me paz, amor / e um pau duro!”.
Pausamos para “Mr Zebra”, uma fábula sinistra firmada numa marcha alegre ao piano, acompanhada de uma ébria seção de metais (executada pelo lendário conjunto britânico “Black Dyke Band”). Nela, nossa heroína despacha alegremente uma rival por envenenar seu ratatouille e enterrá-la viva. Seguimos com a majestosa “Marianne”, sobre uma garota que Amos conheceu em sua juventude que pode ter cometido ou não suicídio; certamente, a música vai além disso. “Marianne” é o som das ilusões juvenis estilhaçando em meio a um arranjo de cordas de tirar o fôlego, criado pelo grandioso John Philip Shenale. Amos canaliza uma onda febril de emoção intensa e inspiração, com um vocal fascinante e uma performance ao piano capturada em sua primeira e única tomada.
Uma harmonia cristalina dá início a “Caught a Lite Sneeze”, expressão da negação, desespero e determinação — tentando em vão lutar por algo que está inexoravelmente morrendo. O ritmo eletrônico circular e o piano e cravo entremeados, num movimento semelhante ao de uma roda d’água, dão suporte a um arranjo vocal belamente intricado. Talvez na esperança de intervenção divina, ela se vira para “Muhammad My Friend”, o que não surpreende uma vez que espiritualidade e religião são tópicos sempre próximos da caneta de Tori. Ela já havia perguntado a Deus se precisava de uma mulher para cuidar dele em seu álbum passado, o que dá ainda mais sentido à ideia de procurar saber o que pensa Muhammad (e ela escreveria “Mrs Jesus” vários anos depois para o Scarlet’s Walk, reafirmando que sua jornada em explorar a feminilidade nas religiões não tem qualquer viés). Clarence J. Johnson III, músico de jazz, lamenta num sax soprano que se mistura como uma sereia ao ápice alucinante da canção.
Mas os Deuses, às vezes, simplesmente não correspondem. Júpiter já foi um deles, e talvez ainda seja. Ela o invoca também, mas seu silêncio é ensurdecedor. Ninguém atende o telefone. “Hey Jupiter” é a rendição, ou ao menos o reconhecimento da realidade. É uma canção triste entoada a sós no escuro, janela aberta para o céu noturno, as estrelas incandescentes num universo apático, a total perda de peso infiltrada em cada célula. “Hey Jupiter” é duramente bonita, são ecos de dor, arrependimento, e vulnerabilidade desnuda em sua essência — somente o piano, um órgão pulsante, acordes ocasionais na guitarra e a voz de Tori, deslumbrante como a luz estelar. Ela gravou uma segunda versão para o lançamento do single, a “Dakota Version”, completada por um acompanhamento rítmico alucinatório.
A jornada toma um desvio ao Deep South, e “Way Down”, com sua solene harmonia gospel, é a porta de entrada. A primeira parada é uma pequena cidade, “Little Amsterdam”, afundada numa tragédia sulista à moda antiga. Amor, ódio, sexo e a aptidão humana à crueldade sem freios são temas delimitados num ritmo languido, com toques de guitarra vindos do blues, amparo eletrônico e um barulho de rádio acompanhando a melodia dissonante. Em Little Amsterdam o sexo é uma mercadoria a ser negociada como dita a cartilha. “Tocar esse órgão deve server para alguma coisa”, certo? “Talula" nos diz que a resposta é “Não”, como se já não soubéssemos. “Esbarrei no escudeiro que executou Ana Bolena / Ele fez tudo tão rápido, um homem misericordioso. / Ela disse que um mais um são dois, mas Henrique disse que são três / então que seja, aqui estou”. “Talula" vangloria-se pelo arranjo mais extravagante do álbum — quando é hora de trazer o groove, Tori não perde tempo. Ela traz dois grandes musicistas para formar a seção rítmica da música, assim como em outras três faixas (“Professional Widow”, “Little Amsterdam” e “In the Springtime of his Voodoo”): George Porter Jr, baixista e vocalista do aclamado conjunto de Nova Orleans de R&B e funk, The Meters, e baterista Manu Katché, conhecido por seu trabalho com Peter Gabriel, Sting, Joni Mitchell, Tracy Chapman, Dire Straits e tantos outros. Se você tem talento deste calibre em seu disco, você os deixa brilhar, e assim faz Amos. Em “Talula”, o baixo de Porter é uma máquina galopante.
Depois da intempestiva “Talula”, uma longa e melancólica introdução ao piano dá vez a “Not The Red Baron”, um momento de profunda empatia em meio a tantas recriminações violentas. Boys For Pele foi gravado num tempo em que HIV/AIDS assolou milhões de vidas, e a fita vermelha tornou-se um símbolo universal de memória e reconhecimento. Amos canta como de um hino sombrio, “não alguém que de fato tenha conhecido, apenas outro piloto abatido / talvez eu cante a ele um último sonzinho / muitos lá conhecem algumas garotas usando fitas vermelhas / as mais belas fitas vermelhas”. Assim como em tantas outras faixas do disco, a performance colossal de “Not The Red Baron” veio de sua primeira tomada.
A rápida e excêntrica “Agent Orange” dá vazão à poderosa porção final da jornada, logo abrindo espaço para a agridoce “Doughnut Song”, uma expressão cortante da mágoa e ressentimento. Ele já seguiu adiante e encontrou alguma que pôde ser o que ela não conseguiu, a outra metade. “Você me disse noite passada que tinha virado um sol, agora com seu próprio satélite, tão devoto / feliz por você, e tenho certeza de como lhe odeio / dois filhos, muitas, muitas chamas capazes”. “In The Springtime Of His Voodoo” é puro “badass”, uma estranheza provocadora que representa as labaredas mais quentes que Pele expira no disco. Ela acompanha uma trilha penosa de traição, promessas rompidas e fracassos. “Tenho uma b*ceta raivosa, garotas, vocês sabem do que estou falando / quando todo esse requebrado não acerta o truque”. Ela zomba não somente de seu antigo amor, mas também da nova paixão dele — “Eu sei que ela não é lá essas coisas / mas você precisa assumir suas dívidas, às vezes / vocês precisam se endividar, garotos! / quando são o brilho solar de suas mamãezinhas / vocês precisam ceder algo, às vezes / quando são a cereja mais doce numa torta de maçã!”.
Depois da última labareda furiosa, “Putting The Damage On” é uma âncora racional que traz o álbum de volta à realidade, e purifica todos os pensamentos abstratos que passavam acelerados por sua cabeça. É aquele momento de quietude em que todas as lágrimas secaram e o lento processo de superação pode começar. “Putting the Damage On” é sobre realmente lidar com a situação, por mais difícil que seja, e assim se levantar, tirar a poeira e se aproximar de um poder que você reconhece dentro de si, em algum lugar. É ao menos um ponto de partida, ainda que complicado, como ela mesmo admite às estrelas na reflexiva extensão final, “Twinkle”: “o que significa que de fato consigo / significa que de fato consigo / tão duro, tão duro”. Assim acaba o álbum, numa nota de força moral, trêmula como vem a ser.
Há uma grandeza clássica em Boys For Pele, uma atemporalidade que vai bem além de 1996; Tori Amos está operando num plano diferente do nosso. As imagens que emprega, o poder e convicção de seu canto e habilidade instrumental, as estruturas musicais desafiantes e nada ortodoxas, momentos de beleza assombrosa e feiura severa… Tudo isso reflete a dinâmica real de um relacionamento, talvez de muitos relacionamentos, ainda que através da lente de uma imaginação destemida e escancarada por um tumulto íntimo. Boys For Pele é audacioso, por vezes difícil e impenetrável, não sendo uma audição simples que imediatamente captura sua audiência com linhas melódicas certeiras. É completamente intransigente, e se por vezes parece chafurdar em autopiedade, bem, é o que nós humanos fazemos quando somos feridos em nossa essência. É um álbum como nenhum outro, e só poderia ter vindo de Tori Amos. Suas curvas sinuosas e trajetórias inesperadas causam um fascínio sem fim. 20 anos se passaram desde que este disco foi lançado e capturou de modo visceral os sentimentos de inúmeros fãs que também passaram pela dor, confusão e turbulência que expressa tão poeticamente. Pessoas se identificam com o disco por ser ele real e atraente de maneira inegável, já que é comum que fale diretamente com nossas próprias experiências. Seu poder jamais diminuiu. Boys For Pele continua enfurecido na mesma intensidade, são chamas eternas em combustão.
Como já devem saber, "Boys For Pele", um dos trabalhos mais marcantes de Tori, completa hoje 20 anos de lançamento. Muitas foram as homenagens feitas por páginas musicais, e uma delas me chamou atenção a ponto de querer traduzi-la para o blog. Foi escrita para o site PopMatters, e você pode lê-la na íntegra a seguir (para acessar a original, clique AQUI).
Uma outra ótima notícia é que Tori relançará o disco numa versão deluxe, à semelhança do que fez para o Little Earthquakes e Under The Pink, e mais detalhes deverão ser divulgados em breve. Por fim, como não podemos esquecer: parabéns, "Pele", e obrigado pela companhia tão necessária por todos esses anos. Sua chama é viva!
"BOYS FOR PELE": 20 ANOS DE FOGO
Por Chris Gerard
Sentada na varanda de uma choupana enquanto malignamente aprecia a vista, a perna sobre um dos braços da cadeira de balanço, apoiando um rifle com um quê de naturalidade. Sua expressão deixa clara a disposição em usar a arma contra qualquer um que ouse se meter com ela. Estava por aí, vagabundeando pelo pântano, lama espalhadas nas pernas e nos pés. Uma cobra circula um dos trilhos da cadeira, e um galo morto está pendurado de cabeça para baixo a seu lado. Há magia negra em curso, aqui. Esta dama conhece o vodu com a palma da mão. Um homem esperto daria meia volta, correndo a todo fôlego na direção oposta. Um mulher esperta talvez fizesse o mesmo.
Afinal, quem sabe do que Tori Amos é capaz?
São 20 anos desde que Tori Amos derrubou o açoite no chão e pôs fogo em seu piano, disposta (e possivelmente ansiosa) a sacrificar qualquer um que a desprezasse, nas chamas eternas de Pele. 20 anos desde que ergueu seu coração ainda sangrando depois de arrancá-lo a seco do peito, para que o mundo o examinasse. 20 anos desde que atravessou o labirinto do naufrágio emocional causado por ver aquilo que lhe parecia eterno ser destruído. “Boys For Pele” ainda queima com a mesma intensidade de quando foi revelado — as terminações nervosas expostas, a instabilidade emocional ainda viva. A raiva fervilhante e a promessa de retaliação dá vez a uma vulnerabilidade trêmula. Há bastante autoconfiança, ainda que a dor e a ferida borbulhem à superfície com facilidade também. Parte dele não faz qualquer sentido num modo literal, mas procura evocar sentimentos e pensamentos por meio de uma palavra, um som, ou de uma imagem em flash. “Boys For Pele” é uma jornada, munida dos impulsos humanos mais elementais. É uma catarse, severa e bela, estranha e penosa, contraditória, mas sempre autêntica.
Começamos de um momento bem degradante. Pulsos pálidos de piano nos envolvem em “Beauty Queen”, a voz de Tori torpe pelo entendimento de que a beleza é só uma fachada. A beleza não lhe leva muito longe. Não é uma armadura eficiente. Facas conseguem atravessa-la. Deste alicerce parte “Horses”, gravada com a canção anterior numa única tomada, Amos tocando seu Bösendorfer amparada por um gabinete Leslie num cemitério ventoso da Irlanda. Os cavalos voltaram de “Winter” e estão aptos para o passeio.
As coisas se tornam obscuras rapidamente. “Blood Roses” deixa bem claro o que incentivou a jornada. A emoção humana é algo poderoso. O cravo estridente soa como lâminas cirúrgicas. O piano era suave demais para esta acusação lancinante sobre um homem que não soube cuidar dela. As imagens são bem claras: “Depilei cada lugar onde você esteve, garoto / Depilei cada lugar onde você esteve”. Ela transborda em desgosto por ter sido usada, ao perceber que “às vezes você não passa de carne”. Assim como em boa parte do álbum, a voz de Tori vai da beleza intensa à selvageria e dissonância. Ela não tem pudores em mostrar como a dor deixa tudo mais feio. “Blood Roses” é uma ferida viva, aberta, com o vermelho borbulhando das teclas do cravo, enquanto sinos de igreja fantasmagóricos soam à distância.
Amos invoca o diabo em “Father Lucifer”, um rodopio gracioso da escuridão, uma paquera com o outro lado. Quando o desespero assume o controle você chega a seu extremo. Talvez seja nele que “Professional Widow” está circunscrita. Finalmente surge a bateria e uma vibe rock and roll feroz ganha espaço pela primeira vez. Amos conduz o piano e o cravo como uma leoa furiosa, totalmente desvairada. As figuras são confrontacionais e provocativas, e a música se encaminha a um climax frenético como um tornado, arrastando mais e mais entulhos até finalmente relaxar à semelhança de uma torrente de veneno expulsa de suas veias: “dê-me paz, amor / paz, amor / dê-me paz, amor / e um pau duro!”.
Pausamos para “Mr Zebra”, uma fábula sinistra firmada numa marcha alegre ao piano, acompanhada de uma ébria seção de metais (executada pelo lendário conjunto britânico “Black Dyke Band”). Nela, nossa heroína despacha alegremente uma rival por envenenar seu ratatouille e enterrá-la viva. Seguimos com a majestosa “Marianne”, sobre uma garota que Amos conheceu em sua juventude que pode ter cometido ou não suicídio; certamente, a música vai além disso. “Marianne” é o som das ilusões juvenis estilhaçando em meio a um arranjo de cordas de tirar o fôlego, criado pelo grandioso John Philip Shenale. Amos canaliza uma onda febril de emoção intensa e inspiração, com um vocal fascinante e uma performance ao piano capturada em sua primeira e única tomada.
Uma harmonia cristalina dá início a “Caught a Lite Sneeze”, expressão da negação, desespero e determinação — tentando em vão lutar por algo que está inexoravelmente morrendo. O ritmo eletrônico circular e o piano e cravo entremeados, num movimento semelhante ao de uma roda d’água, dão suporte a um arranjo vocal belamente intricado. Talvez na esperança de intervenção divina, ela se vira para “Muhammad My Friend”, o que não surpreende uma vez que espiritualidade e religião são tópicos sempre próximos da caneta de Tori. Ela já havia perguntado a Deus se precisava de uma mulher para cuidar dele em seu álbum passado, o que dá ainda mais sentido à ideia de procurar saber o que pensa Muhammad (e ela escreveria “Mrs Jesus” vários anos depois para o Scarlet’s Walk, reafirmando que sua jornada em explorar a feminilidade nas religiões não tem qualquer viés). Clarence J. Johnson III, músico de jazz, lamenta num sax soprano que se mistura como uma sereia ao ápice alucinante da canção.
Mas os Deuses, às vezes, simplesmente não correspondem. Júpiter já foi um deles, e talvez ainda seja. Ela o invoca também, mas seu silêncio é ensurdecedor. Ninguém atende o telefone. “Hey Jupiter” é a rendição, ou ao menos o reconhecimento da realidade. É uma canção triste entoada a sós no escuro, janela aberta para o céu noturno, as estrelas incandescentes num universo apático, a total perda de peso infiltrada em cada célula. “Hey Jupiter” é duramente bonita, são ecos de dor, arrependimento, e vulnerabilidade desnuda em sua essência — somente o piano, um órgão pulsante, acordes ocasionais na guitarra e a voz de Tori, deslumbrante como a luz estelar. Ela gravou uma segunda versão para o lançamento do single, a “Dakota Version”, completada por um acompanhamento rítmico alucinatório.
A jornada toma um desvio ao Deep South, e “Way Down”, com sua solene harmonia gospel, é a porta de entrada. A primeira parada é uma pequena cidade, “Little Amsterdam”, afundada numa tragédia sulista à moda antiga. Amor, ódio, sexo e a aptidão humana à crueldade sem freios são temas delimitados num ritmo languido, com toques de guitarra vindos do blues, amparo eletrônico e um barulho de rádio acompanhando a melodia dissonante. Em Little Amsterdam o sexo é uma mercadoria a ser negociada como dita a cartilha. “Tocar esse órgão deve server para alguma coisa”, certo? “Talula" nos diz que a resposta é “Não”, como se já não soubéssemos. “Esbarrei no escudeiro que executou Ana Bolena / Ele fez tudo tão rápido, um homem misericordioso. / Ela disse que um mais um são dois, mas Henrique disse que são três / então que seja, aqui estou”. “Talula" vangloria-se pelo arranjo mais extravagante do álbum — quando é hora de trazer o groove, Tori não perde tempo. Ela traz dois grandes musicistas para formar a seção rítmica da música, assim como em outras três faixas (“Professional Widow”, “Little Amsterdam” e “In the Springtime of his Voodoo”): George Porter Jr, baixista e vocalista do aclamado conjunto de Nova Orleans de R&B e funk, The Meters, e baterista Manu Katché, conhecido por seu trabalho com Peter Gabriel, Sting, Joni Mitchell, Tracy Chapman, Dire Straits e tantos outros. Se você tem talento deste calibre em seu disco, você os deixa brilhar, e assim faz Amos. Em “Talula”, o baixo de Porter é uma máquina galopante.
Depois da intempestiva “Talula”, uma longa e melancólica introdução ao piano dá vez a “Not The Red Baron”, um momento de profunda empatia em meio a tantas recriminações violentas. Boys For Pele foi gravado num tempo em que HIV/AIDS assolou milhões de vidas, e a fita vermelha tornou-se um símbolo universal de memória e reconhecimento. Amos canta como de um hino sombrio, “não alguém que de fato tenha conhecido, apenas outro piloto abatido / talvez eu cante a ele um último sonzinho / muitos lá conhecem algumas garotas usando fitas vermelhas / as mais belas fitas vermelhas”. Assim como em tantas outras faixas do disco, a performance colossal de “Not The Red Baron” veio de sua primeira tomada.
A rápida e excêntrica “Agent Orange” dá vazão à poderosa porção final da jornada, logo abrindo espaço para a agridoce “Doughnut Song”, uma expressão cortante da mágoa e ressentimento. Ele já seguiu adiante e encontrou alguma que pôde ser o que ela não conseguiu, a outra metade. “Você me disse noite passada que tinha virado um sol, agora com seu próprio satélite, tão devoto / feliz por você, e tenho certeza de como lhe odeio / dois filhos, muitas, muitas chamas capazes”. “In The Springtime Of His Voodoo” é puro “badass”, uma estranheza provocadora que representa as labaredas mais quentes que Pele expira no disco. Ela acompanha uma trilha penosa de traição, promessas rompidas e fracassos. “Tenho uma b*ceta raivosa, garotas, vocês sabem do que estou falando / quando todo esse requebrado não acerta o truque”. Ela zomba não somente de seu antigo amor, mas também da nova paixão dele — “Eu sei que ela não é lá essas coisas / mas você precisa assumir suas dívidas, às vezes / vocês precisam se endividar, garotos! / quando são o brilho solar de suas mamãezinhas / vocês precisam ceder algo, às vezes / quando são a cereja mais doce numa torta de maçã!”.
Depois da última labareda furiosa, “Putting The Damage On” é uma âncora racional que traz o álbum de volta à realidade, e purifica todos os pensamentos abstratos que passavam acelerados por sua cabeça. É aquele momento de quietude em que todas as lágrimas secaram e o lento processo de superação pode começar. “Putting the Damage On” é sobre realmente lidar com a situação, por mais difícil que seja, e assim se levantar, tirar a poeira e se aproximar de um poder que você reconhece dentro de si, em algum lugar. É ao menos um ponto de partida, ainda que complicado, como ela mesmo admite às estrelas na reflexiva extensão final, “Twinkle”: “o que significa que de fato consigo / significa que de fato consigo / tão duro, tão duro”. Assim acaba o álbum, numa nota de força moral, trêmula como vem a ser.
Há uma grandeza clássica em Boys For Pele, uma atemporalidade que vai bem além de 1996; Tori Amos está operando num plano diferente do nosso. As imagens que emprega, o poder e convicção de seu canto e habilidade instrumental, as estruturas musicais desafiantes e nada ortodoxas, momentos de beleza assombrosa e feiura severa… Tudo isso reflete a dinâmica real de um relacionamento, talvez de muitos relacionamentos, ainda que através da lente de uma imaginação destemida e escancarada por um tumulto íntimo. Boys For Pele é audacioso, por vezes difícil e impenetrável, não sendo uma audição simples que imediatamente captura sua audiência com linhas melódicas certeiras. É completamente intransigente, e se por vezes parece chafurdar em autopiedade, bem, é o que nós humanos fazemos quando somos feridos em nossa essência. É um álbum como nenhum outro, e só poderia ter vindo de Tori Amos. Suas curvas sinuosas e trajetórias inesperadas causam um fascínio sem fim. 20 anos se passaram desde que este disco foi lançado e capturou de modo visceral os sentimentos de inúmeros fãs que também passaram pela dor, confusão e turbulência que expressa tão poeticamente. Pessoas se identificam com o disco por ser ele real e atraente de maneira inegável, já que é comum que fale diretamente com nossas próprias experiências. Seu poder jamais diminuiu. Boys For Pele continua enfurecido na mesma intensidade, são chamas eternas em combustão.
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segunda-feira, 11 de janeiro de 2016
Tori presta homenagem pela morte de David Bowie
Hoje é um dia de muito pesar para a música mundial, por conta da morte do lendário David Bowie, aos 69 anos. Vários artistas e personalidades vem prestando tributo ao Camaleão do Rock, e Tori também postou uma imagem sua no instagram acompanhada de um trecho de "After All", cover que veio a se tornar b-side do single Strange Little Girl. Para acessar a homenagem, reproduzida abaixo, clique AQUI. No mais deixamos também dois vídeos, um para a faixa citada e outro de "Lazarus", single mais recente do britânico, lançado há poucos dias e parte de seu disco mais recente, Blackstar. Nossos melhores pensamentos para o ícone que nos deixa hoje, bem como seus familiares e amigos.
Gold Dust Photobook
Uma pequena homenagem do ToriBr para os lançamentos originais de Tori Amos no século 21. A maioria das fotos foi obtida via Yessaid/Toriphoria (Thank you very much!).
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