quarta-feira, 28 de agosto de 2013

[Tradução] Matéria sobre The Light Princess para o site Standard UK

Saiu hoje uma matéria sobre o The Light Princess, musical de Tori com estreia para o final de setembro. Nela, vemos a cantora e compositora dando vários detalhes do processo criativo para a peça, além de falar sobre qual se tornou a motivação real para sua nova empreitada; tudo isso nos motivou a fazer a tradução. Para ler a versão original, em inglês, segue o LINK; já a versão em português, logo a seguir.

TORI AMOS FALA SOBRE SEU NOVO MUSICAL, THE LIGHT PRINCESS, ESTREANDO EM BREVE NO NATIONAL THEATRE

O musical de Tori Amos “The Light Princess” esteve em produção nos últimos cinco anos e agora está bem próximo de ser lançado no National Theatre. Espere por canções originais, fantoches mágicos e uma mulher flutuante, sobre o palco.


“Nick Hytner me disse, ‘Escrever um musical é um pesadelo glorioso’,” conta Tori Amos com franqueza. “Ele disse, ‘você terá a jornada de sua vida. Mas precisa estar disposta a desmontar toda a estrutura para rescrevê-la novamente’”.
Está claro que foi uma jornada. O musical de Amos, “The Light Princess”, seria inicialmente lançado em 2011, e só agora chega ao palco do National Theatre’s Lyttelton, no final de setembro. As apostas são as melhores: será dirigido por Marianne Elliott, responsável também por War Horse.
É, apesar do suporte estelar, um projeto bastante pessoa para Amos, 49 (sic), que escreveu a música e letras em parceria com o dramaturgo Samuel Adamson (Pillars of the Community, Breakfast at Tiffany’s). Não só The Light Princess tem a ocupado pelos últimos cinco anos, mas seu tópico principal — o despertar sexual feminino — é bem importante para ela. É por isso que Amos, nascida na Carolina do Norte e hoje dividida entre a Flórida, Irlanda e Cornualha, passou seu verão numa sala de ensaios em Southwark.
Livremente adaptado a partir do conto de fadas de George MacDonald, escrito no Século XIX, The Light Princess conta a história de Althea, uma princesa que vive sob uma maldição que a sublima em angústia, sendo assim obrigada a viver presa para não sair flutuando sem rumo. Só quando aprende a arte de chorar, torna-se mais assentada e pode assim se casa com o príncipe que por ela se apaixonou.
É um material rico psicologicamente para Amos, que já documentou o meio religioso em que foi criada, experiências sexuais, abortos e gravidez em canções que rompem tabus, como Cornflake Girl, Professional Widow e God. Tendo sobrevivido a um episódio de violência sexual aos 21 anos, ela co-fundou a Rede Nacional para o Estupro, Abuso e Incesto (RAINN), uma organização anti-agressão sexual com centros locais por todo os EUA.
Mesmo baseada nos elementos do conto de fadas de MacDonald, ela insiste, “nunca foi nosso desejo ambientar o musical antes dos direitos das mulheres terem surgido. Queríamos um prumo adolescente que tivesse ressonância em jovens do século XXI, bem como em seus pais”.
Amos mantém total sigilo sobre como Althea irá de fato flutuar no palco, mas, assim como em War House, a apresentação será composta também de animação, fantoches e efeitos aéreos. Haverá também uma orquestra ao vivo, mas a produção não será cheia de números showstopping. Canção, diálogo e movimento são integrados. “Sam e eu escolhemos por manter uma linearidade dramática também nas canções, fazendo com que não paremos a peça por conta de momentos muito emocionais.”
Amos vendeu mais de 12 milhões de álbuns e foi indicada ao Grammy oito vezes. Ela primeiro surgiu no cenário musical em 1992 com seu disco solo, Little Earthquakes, um set de canções baseadas no piano. Confirmou o status de uma das mais imaginativas artistas femininas do pop com seus lançamentos subsequentes, incluindo Under the Pink, Boys for Pele, e uma coleção de covers, Strange Little Girls. Mais recentemente gravou dois discos em parceria com o selo clássico Deutsche Grammophon; no entanto, ela nunca havia escrito um musical antes.
Inicialmente, Amos abordou os promoters da Broadway com o conceito de The Light Princess; não demorou para perceber que precisava de uma produtor criativo, “não somente um de olho nas cifras de dólar”. Ela foi então aconselhada a encontrar Hytner, o diretor artístico do National Theatre, “porque eles estavam procurando por músicos contemporâneos para colaborações”.
Ainda que ele tenha enumerado as dificuldades de escrever um grande musical (“existe um cemitério cheio deles”), Amos sabia ter encontrado o produtor certo. “Eu gosto de me arriscar”, diz ela com olhar vislumbrado.
O National organizou seu encontro com Adamson (que já havia adaptado o filme “Tudo Sobre Minha Mãe” para o Old Vic [teatro britânico]) e uma parceria criativa nasceu. Hoje ela o chama de seu “marido no papel”. Originalmente só ela escrevia as canções, mas agora eles as escrevem juntos. “Somos implacáveis um com o outro. Eu olharei para ele e direi, ‘se é melhor em diálogo, então assuma’.”
A relação foi testada quando Hytner adiou a estreia. “Foi a melhor decisão,” Amos diz hoje. “Nick disse a mim, ‘esse musical tem de ser melhor do que bom. Não estou dizendo para simplesmente empatetá-lo, ou universalizá-lo com o objetivo de fazermos mais dinheiro dele. Estou lhe recomendando o contrário. Vá mais fundo, seja corajosa. Você tem a chance de dizer coisas a adolescentes e adultos que ressoarão neles e nelas quando saírem do teatro, coisas sobre as quais poderiam estar discutindo naquela semana’.”
Ela e Adamson começaram a reescrever. Dois anos depois, ficou pronto. Elliott trouxe consigo uma super equipe, incluindo a designer Rae Smith (que ganhou o Evening Standard Best Design Award por War Horse), o supervisor musical Martin Lowe e o coreógrafo Steven Hoggett (Black Watch, Once).
É como uma masterclass em teatro todo dia, Amos fala com entusiasmo.
“Marianne está em sua melhor forma neste momento. É seu primeiro musical, e o rigor que ela traz para toda sua equipe criativa é algo que nunca vi igual em minha vida. Ela nos incentiva a criar em conjunto, e então quando trazemos o resultado supervisiona tudo”.
Amos deleita-se em ser tão presente. “Às vezes você precisa compor no momento, porque a equipe visual necessita de mais 20 compassos com a adição de uma nova cena. E eu não creio no uso de fillers. Design sônico é afrodisíaco quando você ganha o traquejo”.
O elenco de The Light Princess é uma combinação de performers de musicais (Clive Rowe, Hal Fowler) e atores de fora deste meio. A ruiva Rosalie Craig (que se assemelha à jovem Amos) fará Althea. “Ela tem treinado por 18 meses para encarnar o papel,” diz Amos. Nick Hendrix (que atuou pela última vez na peça The Winslow Boy) é o príncipe guerreiro Digby.
Amos, que chama suas canções de “garotas”, nunca compôs antes para vozes masculinas, e tem amado escrever para a extraordinária extensão vocal de Rowe (ele será o pai da light princess). “São quase três oitavas, o que é muito raros dos dois lados do Atlântico.”
Mesmo quando os atores fazem uma pausa para o almoço, ela volta ao salão de ensaios para que possa ouvi a equipe criativa. Ela e Craig brincam de que gostariam de permanecer lá em sacos de dormir. Muitas cantoras pop ficariam a ver navios num salão de ensaio do National Theatre, mas Amos credita sua tenacidade à insistência de seus pais em oferecer uma educação musical completa para a filha. Treinada em música clássica, ela participava do Peabody Conservatory of Music até os 11 anos.
“Minha mãe era a esposa de um pároco nos anos 60, antes do movimento feminista, então ela trouxe muitas de suas ideias para mim. Quando meu pai ia trabalhar, lá vinha ela com uma coleção de discos, tocando para mim de um tudo: desde Fats Waller e Billie Holiday até trilhas de musicais.”
Em 2011 ela gravou Night of Hunters, com tributos a Bach, Chopin e Schubert, seguido pelo álbum Gold Dust (2012), no qual a vimos retrabalhando antigas canções com a Metropole Orchestra.
As experiências a abriram para “um sem fim de música clássica sobre a qual ela não se debruçava há anos, ou nunca de fato tinha se aberto. Eu amo Schubert mas não tinha ouvido Winterreise antes. E tudo isso aconteceu durante o processo de rescrita de The Light Princess.”
Esta peça é sobre a angústia — Althea e seu príncipe perderam suas mães, e precisam ganhar independência de seus pais poderosos. Isso a fez questionar seu próprio papel como mãe. “Nós fazemos coisas para nosso filhos; nem sempre as manejamos bem.”
Ela e seu marido, o engenheiro de som inglês Mark Hawley, tem uma filha (“13 com jeito de 32”) e sua irmã tem cinco. Então The Light Princess absorveu bastante dessa adolescência mais crua.
Por várias razões, Amos não inveja a infância moderna. “Pensamos ser mais fácil por causa da maior exposição e das redes sociais; mas você pode se tornar globalmente envergonhado, não somente em sua escola.”
Após o musical, ela começa a gravar um novo álbum pela Universal. “Mas trabalhar com o National Theatre me mudou para sempre. Quando voltar a meu próprio mundo, levarei comigo muito do que aprendi.”

XXX

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Gold Dust, por Lucas Tolotti

Dando continuidade às comemorações dos 50 anos de Tori, estamos publicando agora um conto escrito por Lucas Tolotti, toriphile que já havia colaborado conosco ao escrever um belo texto para o The Beekeeper. Dessa vez, fui pedido para ler seu conto, e por haver nele diversas referências a canções de Amos, achei uma boa ideia sugerir que fosse publicado aqui. Sem mais delongas, leiam a seguir sua intensa e melancólica narrativa.

Gold Dust

Ela desceu na estação errada. E sabia disso. Mas não tinha para onde ir. Não mais. Na saída para a rua, ao subir as escadas, viu um homem tocando violino. Aquela melodia não era estranha. Alguma sinfonia? Não, não soava clássica. Música de raiz? Talvez. Porém nem o som nem o instrumentista davam dicas de que lugar do mundo saíram essas notas.

Observando cada som meu.

O violinista era jovem, deveria ter trinta anos no máximo. Porém sua barba castanha aumentava a aparência madura e adulta, e os pés no chinelo de dedo, calejados e com unhas maltratadas, denunciavam uma vida não muito fácil. Pegou dinheiro da sua bolsa a tiracolo e gentilmente colocou a nota no chapéu de veludo invertido no chão, que funcionava como uma bolsa coletora.

Tenho que dizer alguma coisa, mas nada vem.

Finalmente subiu as escadas e foi abraçada por um dia quente. O céu azul deixava tudo mais difícil. Por que não poderia estar chovendo e nublado? Por que esse sol desdenhando de todas as emoções? Começou a ficar com dor de cabeça. Maldito tempo quente.

É minha nova aparência nesta estação.

Ao andar pelas ruas, atravessando sinaleiros e dobrando esquinas a esmo, ela foi se sentindo fraca. Não era uma fraqueza física. Já andara muito mais em outros dias, outros momentos. Com ele então, era capaz de andar por um dia inteiro, sem cessar. Mas ele não existia mais.

Você deve escolher um lado. Escolherá o medo ou o amor?

Quando estavam juntos, era como se tudo fizesse sentido e só aquilo seria o bastante para uma vida inteira. Distantes, ela se sentia angustiada. Não que ele parecesse se importar. Mas talvez o problema estivesse com ela. Não era sempre assim, afinal? Por que alguém sempre tem que perder?

Você só é popular com anorexia.

Ao sentir cair uma lágrima em sua mão, quase que instintivamente a limpou. Isso tudo não merecia mais uma lágrima. Não depois dos mil oceanos chorados. Ao olhar seu reflexo em um vidro de um carro estacionado junto ao meio-fio, sentiu repulsa pela sua própria imagem. Estava gorda. Cada vez mais magra.

Círculos e círculos, e círculos de novo.

Passando por uma ponte, viu dois lados da cidade. E ouviu os gritos do outro lado da montanha. Gritos que vinham de dentro dela. Gritos de reconhecimento, de autoconhecimento. E também de frustração. Lembrou-se do lado dele que ela não queria ver. Ao menos ter um lado ruim significava possuir um bom. Não era o caso dela.

Você pode ser um companheiro cruel.

Sentou num banco de uma praça, que só não estava deserta pela presença dela (afinal, ela era alguém na praça, não? Era ela alguém?) e de um mendigo (mais alguém que ela? Menos alguém que alguém?). Fixou seu olhar nele. E nas milhares de pombas ao redor. Tinha horror a pombas. Só estavam no mundo para serem transmissoras de toxoplasmose. Mas agora, que diferença fazia? Queria ter toxoplasmose, ao invés de tudo o que tinha. Sangue doente, corpo doente, alma doente.

Eles podem ver.

No banco, deitada embaixo de uma árvore, pensou em sair de lá apenas quando o sol, imprestável sol, desaparecesse. Fechou os olhos. Deixou a bolsa no chão. Pouco importava se a roubassem. Coisas materiais não tinham serventia. Seria pior se roubassem sua essência, seu futuro, sua vida. E isso já havia sido feito.

Garota, foi legal. Mas eu preciso navegar.

Ao acordar, com o sol se pondo, olhou para o chão e surpreendentemente sua bolsa estava lá. Ao abrir, reparou porém que só havia seu absorvente e um gloss. Suas sandálias também haviam sumido. E nenhum sinal de um paraquedas.

Essas coisas preciosas. Deixe-as sangrarem. Deixe-as lavarem.

Andando novamente sem rumo, deparou-se com outra estação de trem. Mais duas e estava em casa. Casa? Lar? Seu pai havia abandonado ela e sua mãe três anos atrás. Aparentemente, cocaína para se manter acordado nas longas noites de trabalho não foi uma boa ideia. Desde então sua mãe trouxe um sem-número de homens para casa. A maioria parecia preferir a filha, porém. E sua grande capacidade de manter a boca fechada. Ou aberta.

Parabéns, seu sangue em minhas mãos.

Em uma noite, ao fugir de sua casa, encontrou ele. Ele ofereceu ajuda. Admirou-se com sua bravura. Ela nunca achara alguém compreensivo assim. Nunca achara alguém. Era o começo de uma vida nova. Era o começo de sua morte. Engraçadas as coisas que você acha na chuva.

Nós trazemos ouro e mirra para ele.

Ela não se moveu desde que recebera a ligação. Ele estava morrendo. Morrendo e mentiu para ela esse tempo todo. Fora usada. Isso era crime. Mas o que fazer agora? Ele não deveria durar mais dois dias. Meses depois, a confirmação. Ele tinha deixado sua marca. E ela acertou. Ele não durou dois dias.

As coisas vão mudar muito rápido.

Sol escaldante durante o dia, frio cortante à noite. Algo a mais para cortá-la. Estava cansada das ruas, das avenidas, das luzes amarelas e vermelhas dos carros. Cansada dos barulhos, principalmente daqueles que vinham de dentro da sua cabeça, que corriam e a seguiam.

Eu estive aqui.

Seus pés estavam posicionados. De frente ou de costas? Como se despedir? Voltara à ponte. Ponte das cidades, das montanhas, do seu interior. Em algum lugar, alguém ri. Alguém chora. Alguém recebe uma notícia boa. Outros, menos afortunados, uma notícia ruim. E ela?
Ela pula.



xxx

Os 5 melhores discos de Tori Amos

Não é lá muito comum na música vermos artistas permanecerem na ativa depois de décadas de carreira, sendo esse um feito ainda mais impressionante se falamos sobre mulheres. Elas ainda tem menos chance de longevidade em suas carreiras musicais, fato comercialmente comprovado se observarmos a lista das 10 turnês musicais mais lucrativas da história. Formada somente por artistas veteranos, apenas uma mulher a integra; no caso, Madonna.
Se para ela, que sempre teve um olho voltado para a cultura de massas, é até hoje complicado manter sua carreira de vento em popa, imagine para uma cantora e compositora de tom mais alternativo, e que teve raros momentos de concordância entre sua proposta artística e o tipo de visão que as gravadoras tinham dela. Multiplique a dificuldade lembrando que essa mesma compositora nunca foi reticente em tratar de temas espinhosos, como violência sexual, fanatismo religioso e morte (seja de pessoas, seja de sentimentos), num tom que ia da melancolia à histeria. Por fim, pense nela como uma visão ruiva e excêntrica, meio maníaca, meio divertida, e feche a fórmula pondo esta visão para “cavalgar” o banco de seu fiel piano enquanto se apresenta. Dá para imaginar que num mundo cada vez mais padronizado e repetitivo ela conseguiria manter uma carreira de mais de 20 anos, completando 50 primaveras em plena atividade e longe, muito longe de se aposentar? Pois bem, essa é Tori Amos, a aniversariante do dia.
Tori tem em seu currículo 13 álbuns de estúdio lançados ao decorrer das duas últimas décadas, e mesmo se mantendo fiel ao seu piano como instrumento principal dos discos, soube explorar em sua prolífica carreira vários estilos musicais e instrumentos secundários (Fender Rhodes, órgãos e sintetizadores), fazendo de seu catálogo um dos mais inovadores e ricos no universo das ditas “cantoras confessionais”, “nascidas” em sua maioria nos anos 90. Para comemorar sua nova idade, relembrar algumas de suas pérolas e apresentar um pouco desse vasto catálogo a pessoas que não a conheçam tanto, o ToriBr listará um Top 5 dos melhores discos da artista. Tentou-se ao máximo manter as decisões imparciais na hora de listar os álbuns, o que nos fez deixar de fora alguns dos discos mais queridos pelos toriphiles. No entanto, será um prazer ouvir sua opinião sobre essa lista, seja nos comentários do blog, seja no Facebook, lembrando sempre que sua formulação tem por objetivo maior celebrar! Celebrar e recapitular um pouco das muitas histórias cantadas por Amos, desde sua mais tenra idade.

Parabéns Tori, por ser tão espetacular e diferente de tudo o que costumamos ver e ouvir por aí. Você é extraordinária, simples assim.

Agora, o Top 5.

5º - NIGHT OF HUNTERS (2011)



Night of Hunters surpreendeu a todos por seu anúncio repentino e proposta curiosa, bastante distinta de trabalhos anteriores de Amos. O conceito, ambicioso e arriscado, baseava-se num ciclo de canção (song cycle) formado por variações inspiradas em temas de música clássica, narrando o drama de um casal que ia da separação à reconciliação no curso de uma noite. Muitas possibilidades foram cogitadas, dentre elas de ser um álbum instrumental, até que finalmente em meados de setembro fomos apresentados ao resultado final. Com o suporte de um octeto clássico, Amos compôs 14 canções a partir de peças de Chopin, Mendelssohn e Debussy, entre outros eruditos, com a cantora interpretando uma mulher que, após grave discussão com seu marido, é tomada pelo desespero e foge de casa. Ela então se depara com uma personagem mítica, Anabelle (interpretada por Tash Hawley, sua filha), que a ajuda a resgatar fragmentos de um passado distante; através deles, a personagem pôde recobrar também o sentimento de compaixão por si própria e, em última instância, por seu marido, permitindo a ela cantar que “you will not ever be forgotten by me, in the precession of the Mighty Stars” para ele.
Dotado de composições complexas e pungentes, evoluindo graciosamente do anoitecer ao amanhecer, Tori demonstrou através do Night of Hunters que nunca é tarde para se aventurar em universos novos, como em parte era o da música clássica para ela. Mesmo “tomando emprestado” motivos melódicos para criar suas próprias canções, a adaptação permitiu à cantora imprimir sua identidade no material, fazendo deste sem dúvida um disco de Tori Amos. Além de sua primeira turnê acompanhada de músicos do mundo erudito, o quarteto de cordas Apollon Muságete, NoH rendeu à artista um prêmio Echo de música clássica, na Alemanha.

Ouça: Shattering Sea; Star Whisperer; Carry

4º - SCARLET’S WALK (2002)



Com a virada do milênio, praticamente todos os discos de Tori trariam um forte conceito para embasá-los. E mesmo já havendo um trabalho conceitual em Strange Little Girls (2001), foi só com seu sucessor, Scarlet’s Walk, que Amos nos entregaria uma concepção riquíssima e bem acabada, na forma de um romance sônico sobre uma heroína às avessas, entregue a uma road trip pelos EUA. Se num primeiro momento Scarlet queria somente acompanhar alguns amigos e affairs até onde eles a levassem, as pessoas e fatos que cruzam seu caminho acabam a obrigando a amadurecer. É assim que a vemos tornar-se uma mulher mais consciente das tragédias e responsabilidades que a circundam, fazendo de sua viagem uma busca pela identidade roubada dela e da terra, por invasores que dominaram seu espírito e os de seus ancestrais. Amos cria um grande mapa de seu país através das figuras que descreve e dos eventos que retrata; um dos mais fortes é o atentado de 11 de setembro, ambientado pela etérea e contundente I Can’t See New York.
Scarlet’s Walk não merece estar nesta lista somente por ser um disco bastante fiel a seu conceito; bem dizer, suas músicas revelam uma faceta mais centrada e “terrígena” de Tori, advinda de sua experiência materna, e são imbuídas de um fogo que flameja calmo, constante, porém dono de uma força tremenda. É nesse espírito mais compassivo que a vemos criar algumas de suas melhores melodias, apresentadas dessa vez não só em seu piano, mas também em instrumentos mais suaves, o Rhodes e o Wurlitzer. Por fim, os arranjos orquestrais de John Phillip Shenale, também envolvido no NoH, pontuam a elegância e imponência de algumas das canções, fazendo do passeio de Scarlet uma das maiores aquisições de Amos como artista.

Ouça: A Sorta Fairytale; I Can’t See New York; Gold Dust

3º - FROM THE CHOIRGIRL HOTEL (1998)



Tori é e sempre será conhecida por ir a fundo em suas feridas emocionais, e isso se deve parcialmente às canções do aquático e soturno From The Choirgirl Hotel. Nascido do sofrimento da cantora pela perda de seu primeiro filho, por um aborto espontâneo (o primeiro de três), é uma coleção de músicas lúgubres e intensas, representando as filhas que deram consolo à Amos enquanto lidava com a sensação de infertilidade, pelos incidentes passados. Musicalmente, trouxe como grande novidade a formação de uma banda completa, o que levou alguns fãs a rechaçá-la por preferirem o formato mais melódico, baseado no piano, dos discos anteriores. A mudança no entanto fortaleceu suas composições, justo por acrescentar novas nuances à visceralidade e crueza do material. Além da banda, a pianista também investiu no uso de pianos eletrônicos e na influência do jazz, em especial para as canções Liquid Diamonds e Pandora’s Aquarium.
Choirgirl é um disco despojado de vaidades, e exatamente nisso que reside sua virtude e genialidade. Ouvimos Tori entregue a seus piores medos e mazelas, como num pesadelo escuro e sufocante, no qual os gritos são diluídos e os movimentos dificultados pela densidade da água. Mesmo com letras por vezes herméticas, os sentimentos expressos não encontram dificuldade em se fazer sentidos, e assim nos deparamos com nossas próprias decepções e medos ressoados nos sussurros, berros e sons abafados que perfazem toda a obra. Como a própria Amos disse, se ela não conseguia criar biologicamente, que fizesse isso da forma como sempre fez, musicalmente. É nesse escambo de almas que reside a estranha beleza do hotel das coristas.

Ouça: Spark; Liquid Diamonds; Playboy Mommy

2º - BOYS FOR PELE (1996)



Se no Scarlet’s Walk a chama que perpassa o disco é suave, isso é algo que não se deve esperar do Boys For Pele. Dedicado à deusa havaiana de mesmo nome, pela qual garotos eram jogados em vulcões na tentativa de apaziguar sua fúria, é um álbum que externa o lado mais obscuro e devorador de Amos, normalmente metaforizado por divindades femininas em suas faces mais “escusas”, menos compreendidas. É um mergulho na raiva e ressentimento sentidos pela cantora, após o término de um relacionamento de sete anos com o homem que ela julgava ser sua alma gêmea. Nesse mergulho, vemos “Pele” evoluir de um início explosivo e inquietante (Blood Roses, Caught a Lite Sneeze) para um final mais singelo e assentado (Putting The Damage On, Twinkle), passando no meio do caminho pelo fundo do poço (Hey Jupiter e Way Down). Há espaço também para destrinchar alguns estigmas de religiões organizadas, especialmente no que diz respeito à herança machista do patriarcado.
Em termos musicais, o disco é sem sombra de dúvida o mais experimental de Amos. A pianista está em sua melhor forma como multi-instrumentista, trazendo e ressignificando diferentes instrumentos de teclas para suas músicas. O cravo, de origem renascentista, é tocado com agilidade, criando assim uma espécie de “chama sonora” que em alguns momentos evoca fúria, e em outros sensualidade; o órgão harmonium, por sua vez, remete a um fogo esvaecendo com suas notas longas e morosas; por fim, o clavicórdio é usado de forma quase cínica, como de uma gargalhada irritante, em Little Amsterdam. Como se não bastasse todos esses novos elementos, algumas das canções ganharam orquestração, arranjos de big band e até mugidos de touro! Tudo isso coordenado pela própria Amos como produtora (pela primeira vez) de seu álbum.
Marcante é a palavra que melhor define “Boys For Pele”. Único em sua execução, representa o tipo de esforço que, creio eu, Tori não tem intenção de igualar; como dizem, um raio só cai uma vez no mesmo lugar... Sorte nossa dela ter captado o trovão antes dele silenciar.

Ouça: Blood Roses; Hey Jupiter (Dakota Version); Doughnut Song

1º - LITTLE EARTHQUAKES (1992)



Little Earthquakes pode não ser o álbum preferido da maioria dos fãs de Tori Amos. No entanto, sua importância, bravura e verve criativa tornam inevitável que seja este o seu melhor disco. Foi através dessa gravação que o mundo conheceu Tori, e através dela que a artista provou sumariamente sua habilidade como pianista, cantora e compositora. Como se não bastasse, o disco mantém o posto de maior vendagem de sua carreira, com cerca de 5,5 milhões de cópias comercializadas desde 1992.
O que torna o Little Earthquakes realmente especial é o fato de suas canções serem, ao mesmo tempo, únicas e universais. Tratando de temas como repressão religiosa, depressão, relações familiares, sexo e até violência sexual, o disco abrange uma variedade de tópicos que não se tornaram obsoletos, mesmo depois de duas décadas. Suas melodias viçosas e cativantes agregam um caráter ainda mais atemporal ao álbum, trazendo à tona velhas e novas emoções sempre que ouvido novamente. É difícil não se comover com os acordes de Winter, nem se projetar nas letras de Silent All These Years ou Precious Things. É impossível não se aterrorizar com o relato de Me And a Gun, ou soltar um riso meio amedrontado para as soturnas piadinhas de Happy Phantom. Quem nunca se sentiu nu ou nua na frente de alguém? Quem nunca esteve na pele daquela everybody else’s girl, querendo na verdade ser de si mesmo?
Pela diversidade de emoções conjuradas e por ser surpreendentemente “pop” que Little Earthquakes é o melhor disco de Tori Amos.

Uma obra prima.

Ouça: Silent All These Years; Winter; Precious Things